A manifestação deste domingo na Avenida Paulista, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, reuniu 750 mil pessoas em seu pico, colocando-a entre as maiores dos últimos anos. A organização do evento o definiu como um ato pela defesa da democracia, mas foi a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro – atualmente investigado pela Polícia Federal por ordem de Alexandre de Moraes, devido à chamada “minuta do golpe” – que despertou o maior grau de mobilização. Independentemente das intenções, convicções e lealdades que guiaram os manifestantes, vindos de todo o Brasil, é inegável que a distopia em que se transformou a vida política do país já era motivo para uma demonstração de indignação popular.
O evento ocorreu sob a sombra do apagão da liberdade de expressão colocado em prática especialmente pelo Supremo Tribunal Federal. Coube ao pastor Silas Malafaia, o principal organizador da manifestação, dizer as palavras mais duras contra a corte, enquanto os políticos evitaram menções diretas e pediram aos manifestantes que não levassem cartazes críticos. Sendo verdadeiras as informações de bastidores segundo as quais um ministro do STF teria dito a um jornalista que, “se ele [Bolsonaro] falar um ‘ai’ do Supremo, vai preso”, teríamos a comprovação de que também virou letra morta o trecho da lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito segundo a qual “não constitui crime (...) a manifestação crítica aos poderes constitucionais”. A ameaça, seja dirigida aos políticos, seja aos demais manifestantes, ignora completamente o oceano de diferença entre a crítica legítima a decisões da corte, mesmo quando feita de forma mais enfática, e a injúria aos ministros ou a incitação a medidas de força como o fechamento do Supremo (estas, sim, manifestações ilegais). O fato de que algo assim tenha sido dito, ou mesmo considerado plausível ou “normalizável”, mostra a disposição do STF de seguir criando tabus, ampliando a lista de assuntos que não podem ser de forma alguma mencionados.
O que temos presenciado há quase cinco anos é uma perseguição ideológica e completamente antidemocrática, contra a qual é absolutamente necessário que a sociedade brasileira se levante
Mesmo alegando-se que a manifestação teria sido movida mais pela defesa do próprio Bolsonaro do que em defesa da democracia, de forma abstrata, isso em nada serve para deslegitimar a mobilização popular. Primeiro, porque não há nada de ilegal ou mesmo imoral em um suposto caráter personalista do evento. Segundo, porque, mesmo descontando a recente investigação de uma possível trama para um golpe de Estado que permitisse uma virada de mesa após a vitória eleitoral de Lula em outubro de 2022, não há como negar que a democracia brasileira está profundamente fragilizada.
O STF e outras instâncias, como o STJ, o TSE e o TCU, introduziram um enorme desequilíbrio no tratamento de partes opostas no espectro político-ideológico, tanto do ponto de vista criminal quanto durante o processo eleitoral de 2022. Observe-se, por exemplo, o desmonte da Operação Lava Jato, com anulação de processos, acordos e multas, permitindo a corruptos escaparem impunes; e compare-se esse desmonte com todas as condenações impostas a aliados de Bolsonaro, além de outros direitistas e conservadores. No caso de dezenas de réus do 8 de janeiro, por exemplo, o devido processo legal está sendo ignorado, com acusadores e julgadores dispensando a necessária individualização de conduta. Mandatos conquistados de forma legítima são cassados contra legem, como no caso de Deltan Dallagnol, privado da cadeira de deputado federal pelo TSE com base em meras ilações que jamais deveriam ter lugar em um julgamento. Durante a eleição de 2022, um dos lados era frequentemente calado, com direito até mesmo a censura prévia, enquanto o outro podia divulgar mentiras em direitos de resposta. Direitistas e conservadores frequentemente são calados nas mídias sociais ainda que não sejam formalmente investigados ou acusados de nada.
Ou seja, o que temos presenciado há quase cinco anos, quando foi aberto o inquérito das fake news – e o dizemos sem julgar as intenções dos ministros, mas apenas observando os resultados práticos de inúmeras decisões –, é uma perseguição ideológica e completamente antidemocrática, contra a qual é absolutamente necessário que a sociedade brasileira se levante. Se um dos principais (se não o principal) alvos ou vítimas dessa perseguição é Jair Bolsonaro, especialmente pelo prejuízo sofrido durante a campanha eleitoral, acaba sendo inevitável que as pautas acabem mais ou menos misturadas. O fato é que, goste-se ou não de Bolsonaro ou de seus aliados, goste-se ou não do que eles afirmam, a defesa da democracia tem de ser feita de forma integral, e o contrário disso é hipocrisia rasteira. A liberdade de expressão e o devido processo legal valem para todos, mas em vez disso no Brasil de hoje vigora a frase atribuída a Juan Domingo Perón: “aos amigos, tudo; aos inimigos, nem mesmo a lei”.
Mesmo contidos – sinal do ambiente de mordaça imposto a metade do Brasil –, os 750 mil brasileiros na Avenida Paulista deixaram claro que estão insatisfeitos, e romperam um primeiro ciclo de medo: o de ir às ruas em grandes números, no primeiro protesto realmente multitudinário desde que Alexandre de Moraes, na sequência do 8 de janeiro de 2023, impôs restrições equivocadas ao direito de manifestação, referendadas de forma unânime pelo plenário da corte. Bem sabemos que o efeito prático deste domingo provavelmente não será muito grande. Mas isso não é motivo para que os brasileiros desistam de recuperar sua voz para se opor aos desmandos e ao arbítrio.
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