“Filho feio não tem pai”, diz o ditado perfeitamente aplicável a uma bizarra tentativa de, na calada da noite, enquanto boa parte dos brasileiros está preocupada com as campanhas eleitorais em seus municípios, aprovar na Câmara dos Deputados um projeto de lei que abriria caminho para uma anistia a crimes de caixa dois. Trata-se do PL 1210/2007, que foi proposto naquele ano por Régis de Oliveira (PSC-SP) – que já nem é mais deputado –, foi arquivado no ano seguinte e reapareceu na noite desta segunda-feira no plenário da Câmara em circunstâncias misteriosas, já que até agora ninguém explicou como essa tartaruga foi parar no alto do poste.
O projeto de lei tinha pontos bastante preocupantes, como o estabelecimento do financiamento público de campanha, além de outras regras referentes a coligações e propaganda eleitoral. Mas a polêmica de segunda-feira estava no trecho referente à criminalização do caixa dois.
Caso a manobra tivesse prosperado, as consequências seriam desastrosas
De fato, transformar o caixa dois – tecnicamente, o uso, na campanha eleitoral, de recursos não declarados à Justiça – em crime previsto no Código Penal (atualmente, ele consta apenas do Código Eleitoral) é uma boa ideia, tanto que é a oitava das Dez Medidas Contra a Corrupção propostas pelo Ministério Público Federal e que já estão em análise no Congresso. Mas o truque que se tentou levar a cabo no Congresso consistiu em misturar às Dez Medidas o tal projeto de 2007, com uma emenda que, na prática, significaria a anistia a todos os que se valeram dessa desonestidade no passado, recorrendo ao princípio de que a lei não pode retroagir para prejudicar os réus. Vários parlamentares, ao perceberem a malandragem, protestaram a ponto de o primeiro-secretário da Câmara, Beto Mansur (PRB-SP), ordenar a retirada do projeto da pauta – o presidente da casa legislativa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), está ocupando interinamente a Presidência da República durante a viagem de Michel Temer aos Estados Unidos.
Caso a manobra tivesse prosperado, as consequências seriam desastrosas. O uso de dinheiro não declarado – e, pior, de origem ilícita – em campanhas eleitorais está sendo investigado pela força-tarefa da Operação Lava Jato. De uma hora para outra, os políticos envolvidos com caixa dois irrigado pelo esquema do petrolão poderiam ficar impunes. E não apenas os da Lava Jato, como os de várias outras investigações envolvendo os mesmos trambiques.
Felizmente, deputados atentos protestaram, e a repercussão foi tanta que ninguém teve coragem de assumir a autoria da manobra. Mansur diz não saber como o projeto de 2007 havia voltado à pauta e acrescentou que nem tinha tido acesso ao texto, mas que “o projeto foi defendido por vários líderes, do PT, do PSDB, de partidos do ‘centrão’, vários”, segundo entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. O responsável por definir que projetos vão a votação é o presidente da Câmara, mas Maia disse, também à Folha, o que não deu aval a anistia nenhuma. Nenhum líder de partido ou bancada assumiu a defesa da gambiarra legislativa, nem no plenário, nem depois.
Impossível não lembrar das gravações do ex-diretor da Transpetro Sérgio Machado, em que ele e o senador peemedebista Romero Jucá falavam em “estancar a sangria” da Lava Jato por meio de um “grande acordo nacional”. Independentemente de a trama que quase prosperou na noite de segunda-feira ter sido parte do plano ou ideia isolada de algum parlamentar aloprado, ela nos chama a atenção para a necessidade de vigilância constante sobre o Legislativo para que a banda podre do Congresso não trabalhe pela própria impunidade, inclusive desfigurando o sentido original das Dez Medidas. O episódio mostrou que, neste esforço de fiscalização, a sociedade pode contar também com parlamentares atentos. Que essa aliança garanta mais vitórias contra a corrupção.
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