Em novembro deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso tomou uma decisão que representou a esperança de vermos derrubado um privilégio indevido, o do auxílio-moradia a magistrados, que vem sendo pago em valor fixo mesmo a juízes que têm residência própria na cidade onde trabalham. Com a aposentadoria de Joaquim Barbosa, Barroso havia herdado a relatoria de uma ação movida pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) em 2010, e resolveu liberar a ação para julgamento no mês passado.
Sem conseguir uma liminar a seu contento naquela ocasião, alguns juízes promoveram uma nova ação em 2013, à qual a Ajufe se juntou como parte interessada. A relatoria ficou com o ministro Luiz Fux, que concedeu liminar beneficiando todos os juízes federais. É a decisão que vale atualmente, embora em caráter provisório, como o de toda liminar.
É especialmente inadequado a uma associação de magistrados mover a máquina do Poder Judiciário dessa forma
Por isso, é frustrante ver que a Ajufe pediu o cancelamento da ação original, aquela relatada por Barroso e que estava prestes a ser analisada pelo plenário do STF, oferecendo uma chance ímpar de resolver definitivamente a controvérsia. Do ponto de vista puramente processual, é um direito da entidade. Mas a atitude traz em si um paradoxo: os principais interessados na resolução da controvérsia preferem não vê-la resolvida. Ou, ao menos, não definitivamente.
Acontece que a Ajufe sabe que há enormes chances de o privilégio ser definitivamente suspenso se o processo for a julgamento – há na suprema corte apoio suficiente para barrar em definitivo o pagamento do benefício. O efeito prático da medida, portanto, é impedir que o STF resolva, enfim, essa polêmica. Com a desistência no primeiro processo, a benesse continuará a ser paga com base na liminar de Fux. O problema é que essa liminar tem mais de dois anos e, até o momento, Fux não deu nenhum sinal de que pretende liberar o processo para julgamento em plenário.
Ou seja, ainda que processualmente legítima, a atitude da Ajufe é lamentavelmente protelatória e tem como único objetivo garantir que o auxílio continue sendo pago de forma indefinida, apesar de já haver condições processuais para solucionar a questão. É especialmente inadequado a uma associação de magistrados mover a máquina do Poder Judiciário dessa forma. Há um enorme número de processos esperando julgamento no STF, uma realidade que não é diferente das demais cortes judiciais do país e de conhecimento dos juízes federais. Eles vivem cotidianamente o problema do congestionamento processual nos tribunais e chega a ser irônico que, ao pressentirem seus interesses ameaçados, usem de expediente que apenas contribui para evitar o desfecho de uma decisão que não lhes agradará.
O julgamento do processo relatado por Barroso poderia acabar com um privilégio que beneficia não só o bolso de magistrados, mas de diversos outros agentes públicos, que usam o argumento da isonomia entre carreiras para recebê-lo. Muito já se disse sobre a inadequação do auxílio-moradia: do ponto de vista constitucional, contraria o artigo 39 da Carta Magna, que na remuneração dos membros dos poderes veda “o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”. Além disso, tal benesse tem sido usada como uma tentativa imoral de, por vias tortuosas, recompor perdas salariais.
Diante desse cenário, sendo aceito por Barroso o pedido de desistência feito pela Ajufe, restará à sociedade brasileira esperar que Luiz Fux libere o processo de sua relatoria para julgamento. Não é conveniente que um assunto como este continue a se sustentar em uma decisão provisória, prolongando desnecessariamente um impasse que pode ser conveniente para alguns, mas que incomoda também os bons juízes e prejudica a sociedade.
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