Em uma época não muito longínqua, existia no Brasil um instituto chamado “imunidade parlamentar”. Era definido no artigo 53 da Constituição de 1988 nos seguintes termos: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Mas, assim como tantas outras garantias e liberdades democráticas, o Supremo Tribunal Federal se encarregou de abolir essa imunidade. E o foi fazendo aos poucos: depois de condenar parlamentares por palavras ditas em bate-bocas nos corredores do Congresso e em vídeos publicados em mídias sociais, o STF decidiu que nem mesmo a tribuna da Câmara ou do Senado está a salvo do arbítrio supremo, como acaba de demonstrar o caso do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS).
Na última terça-feira, 15 de outubro, Van Hattem discursou na Câmara para denunciar a perseguição sofrida em um inquérito sigiloso (como sempre) relatado pelo ministro Flávio Dino. O deputado só descobriu que estava sendo investigado ao receber por e-mail uma intimação para depor na Polícia Federal. O inquérito apura um suposto crime contra a honra do delegado da PF Fábio Shor, um dos braços-direitos de Alexandre de Moraes nos inquéritos abusivos conduzidos pelo ministro desde 2019 – foi de Shor, por exemplo, a iniciativa que resultou na investigação de empresários por conversas em um grupo privado de WhatsApp; vários outros pedidos de Shor levaram a decisões de Moraes, mesmo com parecer contrário da Procuradoria-Geral da República. Em 14 de agosto, Marcel van Hattem ocupou a tribuna da Câmara para denunciar, mais uma vez, os desmandos de Moraes, na esteira das denúncias feitas pelo jornalista Glenn Greenwald sobre os métodos heterodoxos (para dizer o mínimo) usados nas investigações comandadas por Moraes; na ocasião, o deputado chamou Shor de “abusador de autoridade”.
Em seu relatório, Dino afirmou que “numa primeira análise, os fatos podem ultrapassar as fronteiras da imunidade parlamentar”. Mas que fronteiras são essas? Afinal, o constituinte foi muito claro ao afirmar que os congressistas são invioláveis por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Ou seja, para efeito de responsabilização civil ou penal, não existe fronteira alguma. Um parlamentar pode dizer as maiores barbaridades, e ainda assim o único julgamento ao qual ele está sujeito é o dos seus pares, em um eventual processo de cassação por quebra de decoro. E tudo isso independe de ser verdade ou não o que Marcel van Hattem afirma sobre o delegado Shor.
Uma proteção tão ampla pode parecer extrema à primeira vista, mas uma análise mais profunda evidencia sua necessidade: o representante do povo precisa, como já dissemos em outra ocasião, “participar do debate público não apenas com a maior liberdade possível, mas com toda a liberdade, inclusive podendo se manifestar de formas que estariam vedadas aos demais cidadãos”. Tanto é assim que a proteção do congressista por “palavras, opiniões e votos” (tecnicamente chamada “imunidade material”) foi mantida intacta quando o próprio Congresso reviu as regras de imunidade, em 2001, para permitir que parlamentares pudessem ser processados no STF sem a necessidade de autorização prévia de seus colegas (a dita “imunidade processual”).
Um regime que não protege as palavras de seus parlamentares – todas elas, as sensatas e as absurdas; as corretas e as equivocadas; as serenas e as destemperadas – não tem como ser chamado de democrático
Essa explicação, por si só, já demonstra o absurdo ditatorial da investigação de um parlamentar por um discurso proferido na tribuna de uma casa legislativa. Mas há outros detalhes merecedores de comentário. Nem mesmo uma distinção que o STF tem usado – equivocadamente, ao menos nos casos envolvendo a “imunidade material” – em casos recentes envolvendo parlamentares, entre atos relacionados à atividade parlamentar e atos sem ligação com o mandato, se aplica a Marcel van Hattem. Afinal, a forma como o STF vem conduzindo seus inquéritos é assunto de interesse público (talvez o principal entre todos os assuntos de interesse público que constam na ordem do dia deste país), e criticá-la é algo que faz parte do trabalho de qualquer congressista.
Dino, tendo sido deputado federal por alguns anos e senador por uns poucos dias, deveria entender que Van Hattem está completamente protegido pela imunidade parlamentar. Se a experiência no parlamento não lhe ensinou isso, seu mestrado em Direito Constitucional deveria tê-lo feito. Se as aulas na Universidade Federal de Pernambuco já sumiram de sua memória, a consulta à jurisprudência do STF nas decisões que protegeram a imunidade parlamentar (excluídas, portanto, as teratologias mais recentes) e votos de ministros como Celso de Mello e Carlos Ayres Britto seria muito útil. Só mesmo o afã atual do STF de perseguir quaisquer críticos – ao governo federal e ao próprio Supremo – explica que tudo isso seja sumariamente jogado pela janela desta forma.
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Em abril de 2024, o ministro André Mendonça recusou um pedido de investigação contra Nikolas Ferreira (PL-MG) pelo episódio de março de 2023 em que o deputado subiu à tribuna com uma peruca para criticar a ideologia de gênero. Na ocasião, Mendonça seguiu a PGR na avaliação de que a imunidade parlamentar é “absoluta” nas dependências do Legislativo, e escreveu que “a atuação livre dos parlamentares na defesa de suas opiniões, sem constrangimentos ou receios de tolhimentos de quaisquer espécies, é condição fundamental para o pleno exercício de suas funções”. Que desta vez um outro ministro tenha decidido pela abertura de investigação por um episódio muito semelhante é algo perigosíssimo, ainda que o eventual desfecho também seja o arquivamento, pois fica aberto o precedente pelo qual nem mesmo a tribuna garante liberdade ao parlamentar.
Nunca é demais recordar que o estopim do AI-5 foi um discurso realizado na tribuna da Câmara, quando Márcio Moreira Alves pediu aos brasileiros que boicotassem os festejos da Independência do Brasil em 1968 – os generais pediram a cabeça do deputado, usando a PGR e o STF, mas a Câmara resistiu; o resto é história. A perseguição a Van Hattem traz de volta os ecos daquele tempo e os perigos que fizeram o constituinte de 1988 incluir na Carta Magna o termo “quaisquer” antes de “palavras, opiniões e votos”. A palavra e o ato de falar estão na própria gênese do termo “parlamentar”; um regime que não protege as palavras de seus parlamentares – todas elas, as sensatas e as absurdas; as corretas e as equivocadas; as serenas e as destemperadas – não tem como ser chamado de democrático.