O deputado Marcel van Hattem denunciou, em 15 de outubro, que está sendo alvo de uma investigação sigilosa motivada por um discurso feito na tribuna da Câmara.| Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados
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Em uma época não muito longínqua, existia no Brasil um instituto chamado “imunidade parlamentar”. Era definido no artigo 53 da Constituição de 1988 nos seguintes termos: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Mas, assim como tantas outras garantias e liberdades democráticas, o Supremo Tribunal Federal se encarregou de abolir essa imunidade. E o foi fazendo aos poucos: depois de condenar parlamentares por palavras ditas em bate-bocas nos corredores do Congresso e em vídeos publicados em mídias sociais, o STF decidiu que nem mesmo a tribuna da Câmara ou do Senado está a salvo do arbítrio supremo, como acaba de demonstrar o caso do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS).

Na última terça-feira, 15 de outubro, Van Hattem discursou na Câmara para denunciar a perseguição sofrida em um inquérito sigiloso (como sempre) relatado pelo ministro Flávio Dino. O deputado só descobriu que estava sendo investigado ao receber por e-mail uma intimação para depor na Polícia Federal. O inquérito apura um suposto crime contra a honra do delegado da PF Fábio Shor, um dos braços-direitos de Alexandre de Moraes nos inquéritos abusivos conduzidos pelo ministro desde 2019 – foi de Shor, por exemplo, a iniciativa que resultou na investigação de empresários por conversas em um grupo privado de WhatsApp; vários outros pedidos de Shor levaram a decisões de Moraes, mesmo com parecer contrário da Procuradoria-Geral da República. Em 14 de agosto, Marcel van Hattem ocupou a tribuna da Câmara para denunciar, mais uma vez, os desmandos de Moraes, na esteira das denúncias feitas pelo jornalista Glenn Greenwald sobre os métodos heterodoxos (para dizer o mínimo) usados nas investigações comandadas por Moraes; na ocasião, o deputado chamou Shor de “abusador de autoridade”.

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Em seu relatório, Dino afirmou que “numa primeira análise, os fatos podem ultrapassar as fronteiras da imunidade parlamentar”. Mas que fronteiras são essas? Afinal, o constituinte foi muito claro ao afirmar que os congressistas são invioláveis por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Ou seja, para efeito de responsabilização civil ou penal, não existe fronteira alguma. Um parlamentar pode dizer as maiores barbaridades, e ainda assim o único julgamento ao qual ele está sujeito é o dos seus pares, em um eventual processo de cassação por quebra de decoro. E tudo isso independe de ser verdade ou não o que Marcel van Hattem afirma sobre o delegado Shor.

Uma proteção tão ampla pode parecer extrema à primeira vista, mas uma análise mais profunda evidencia sua necessidade: o representante do povo precisa, como já dissemos em outra ocasião, “participar do debate público não apenas com a maior liberdade possível, mas com toda a liberdade, inclusive podendo se manifestar de formas que estariam vedadas aos demais cidadãos”. Tanto é assim que a proteção do congressista por “palavras, opiniões e votos” (tecnicamente chamada “imunidade material”) foi mantida intacta quando o próprio Congresso reviu as regras de imunidade, em 2001, para permitir que parlamentares pudessem ser processados no STF sem a necessidade de autorização prévia de seus colegas (a dita “imunidade processual”).

Um regime que não protege as palavras de seus parlamentares – todas elas, as sensatas e as absurdas; as corretas e as equivocadas; as serenas e as destemperadas – não tem como ser chamado de democrático

Essa explicação, por si só, já demonstra o absurdo ditatorial da investigação de um parlamentar por um discurso proferido na tribuna de uma casa legislativa. Mas há outros detalhes merecedores de comentário. Nem mesmo uma distinção que o STF tem usado – equivocadamente, ao menos nos casos envolvendo a “imunidade material” – em casos recentes envolvendo parlamentares, entre atos relacionados à atividade parlamentar e atos sem ligação com o mandato, se aplica a Marcel van Hattem. Afinal, a forma como o STF vem conduzindo seus inquéritos é assunto de interesse público (talvez o principal entre todos os assuntos de interesse público que constam na ordem do dia deste país), e criticá-la é algo que faz parte do trabalho de qualquer congressista.

Dino, tendo sido deputado federal por alguns anos e senador por uns poucos dias, deveria entender que Van Hattem está completamente protegido pela imunidade parlamentar. Se a experiência no parlamento não lhe ensinou isso, seu mestrado em Direito Constitucional deveria tê-lo feito. Se as aulas na Universidade Federal de Pernambuco já sumiram de sua memória, a consulta à jurisprudência do STF nas decisões que protegeram a imunidade parlamentar (excluídas, portanto, as teratologias mais recentes) e votos de ministros como Celso de Mello e Carlos Ayres Britto seria muito útil. Só mesmo o afã atual do STF de perseguir quaisquer críticos – ao governo federal e ao próprio Supremo – explica que tudo isso seja sumariamente jogado pela janela desta forma.

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Em abril de 2024, o ministro André Mendonça recusou um pedido de investigação contra Nikolas Ferreira (PL-MG) pelo episódio de março de 2023 em que o deputado subiu à tribuna com uma peruca para criticar a ideologia de gênero. Na ocasião, Mendonça seguiu a PGR na avaliação de que a imunidade parlamentar é “absoluta” nas dependências do Legislativo, e escreveu que “a atuação livre dos parlamentares na defesa de suas opiniões, sem constrangimentos ou receios de tolhimentos de quaisquer espécies, é condição fundamental para o pleno exercício de suas funções”. Que desta vez um outro ministro tenha decidido pela abertura de investigação por um episódio muito semelhante é algo perigosíssimo, ainda que o eventual desfecho também seja o arquivamento, pois fica aberto o precedente pelo qual nem mesmo a tribuna garante liberdade ao parlamentar.

Nunca é demais recordar que o estopim do AI-5 foi um discurso realizado na tribuna da Câmara, quando Márcio Moreira Alves pediu aos brasileiros que boicotassem os festejos da Independência do Brasil em 1968 – os generais pediram a cabeça do deputado, usando a PGR e o STF, mas a Câmara resistiu; o resto é história. A perseguição a Van Hattem traz de volta os ecos daquele tempo e os perigos que fizeram o constituinte de 1988 incluir na Carta Magna o termo “quaisquer” antes de “palavras, opiniões e votos”. A palavra e o ato de falar estão na própria gênese do termo “parlamentar”; um regime que não protege as palavras de seus parlamentares – todas elas, as sensatas e as absurdas; as corretas e as equivocadas; as serenas e as destemperadas – não tem como ser chamado de democrático.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]