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Editorial

A Marcha da Maconha e os limites da liberdade de manifestação

Manifestantes da "Marcha da Maconha" defendem a legalização da droga, em São Paulo.
Manifestantes da "Marcha da Maconha" defendem a legalização da droga, em São Paulo. (Foto: Ludmilla Souza/Agência Brasil)

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A possibilidade de o Supremo Tribunal Federal legislar mais uma vez, agora derrubando sob a alegação de inconstitucionalidade trechos da Lei de Drogas que criminalizam o porte de entorpecentes, despertou uma reação saudável da sociedade e de membros dos poderes Executivo e Legislativo. Enquanto no STF falta apenas um voto para haver maioria pela legalização – o julgamento está parado após pedido de vista do ministro André Mendonça –, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, articula uma emenda à Constituição que criminalizaria a posse e o porte de qualquer tipo de droga. Recentemente, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) se juntou à mobilização lançando o Pacto Nacional Contra as Drogas.

Além de apoiar a PEC 45/2023, proposta por Pacheco, os prefeitos também têm como alvo a Marcha da Maconha, manifestação cujo objetivo declarado é pressionar por uma legislação mais permissiva em relação às drogas. O prefeito de Sorocaba (SP), Rodrigo Manga, está à frente da iniciativa; o município chegou a aprovar, neste ano, um projeto de lei que proibia a realização da Marcha da Maconha na cidade, mas semanas depois a lei foi derrubada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que considerou o texto inconstitucional e manteve apenas a proibição de que menores de 18 anos estivessem presentes à marcha.

Em uma sociedade democrática, as pessoas têm o direito de ir às ruas para pedir mudanças na legislação sobre drogas; o que a lei proíbe são manifestações que façam apologia ou incitação ao crime

A Gazeta do Povo compartilha totalmente da preocupação dos prefeitos e de outros políticos que já aderiram ao pacto da FNP. Em diversas ocasiões já apresentamos argumentos explicando por que a posse e o porte de drogas, ainda que para uso estritamente pessoal, não deveriam ser legalizados; a melhor ciência médica existente atesta que não existem “níveis seguros” para o consumo, nem mesmo da maconha, que seria a mais fraca entre os entorpecentes. A proliferação de cracolândias Brasil afora é um atestado evidente do enorme mal que as drogas podem causar não apenas aos usuários, mas a todo o seu entorno. A droga destrói famílias e sociedades, e não pode ser tolerada. E também já explicamos por que não existe nenhum tipo de inconstitucionalidade nos trechos da Lei de Drogas que cinco ministros do Supremo já votaram por derrubar.

No entanto, a tentativa de proibir a Marcha da Maconha é de natureza diferente, e apresenta um duro teste para nossas convicções democráticas. A liberdade de manifestação é uma garantia constitucional, cláusula pétrea de nossa Carta Magna, como atestam os incisos IV e XVI do artigo 5.º. A lei pode impor algumas restrições de caráter prático, por exemplo regulamentando a forma como as autoridades devem ser avisadas antes de um evento. Mas, em relação ao conteúdo das manifestações, só existem duas proibições: elas não devem conter nem incitação, nem apologia ao crime, previstas nos artigos 286 e 287 do Código Penal.

No caso específico da Marcha da Maconha, por exemplo, nem durante sua preparação nem durante sua realização poderia haver discursos estimulando as pessoas a ter e consumir drogas, por se tratar de ato ilegal – esta é a definição de incitação ao crime. Tampouco poderia haver elogio a usuários ou, pior ainda, a traficantes por “desafiarem a lei”, o que constituiria apologia. Havendo incitação ou apologia, os responsáveis ficariam, evidentemente, sujeitos a responsabilização – o mesmo, aliás, valeria para o consumo de drogas durante a manifestação, e não faz sentido pretender, como já aconteceu, que as autoridades policiais não atuem para evitar esse tipo de situação.

Se o objetivo da marcha, entretanto, é apenas pedir que a lei seja alterada, desde que não haja nem apologia, nem incitação ao crime, restringi-la seria um avanço indevido sobre o livre direito à manifestação – repetimos: por mais que discordemos daquilo que se pede na passeata. Mesmo que muitos participantes da marcha estejam realmente interessados em consumir seu baseado em paz, o que eles pedem naquela ocasião específica é que a lei seja modificada para que eles possam fazê-lo sem a respectiva responsabilização penal, e não há como reprimir essa manifestação sem acabar violando liberdades democráticas. É sintomático, neste sentido, que mesmo a recente lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito tenha salvaguardado o direito à manifestação afirmando que “não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”, o que inclui a crítica a leis e a reivindicação de que elas sejam alteradas.

“Liberdade para o pensamento que detestamos” – a frase célebre do juiz da Suprema Corte norte-americana Oliver Wendell Holmes Jr. define perfeitamente o caso em tela. Somos frontalmente contrários à legalização das drogas, consideramos insensata a defesa de mudanças na lei que permitam a comercialização, o porte e a posse de entorpecentes, mas reconhecemos que, em uma sociedade democrática, as pessoas têm o direito de ir às ruas para pedir tais mudanças. Que os prefeitos e todos os demais políticos conscientes do mal que as drogas causam à sociedade não deixem que essa convicção sirva para relativizarmos garantias democráticas, nestes tempos em que liberdades valiosas como a de expressão já se encontram sob ataque.

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