Em dezembro de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello resolveu colocar a sua própria vontade acima das decisões da corte que integra, em uma decisão que tinha o potencial de lançar o país no caos: mandou soltar, por decisão monocrática, todos os presos do país que tivessem condenação em segunda instância, mas sem decisão transitada em julgado, com exceção dos que tinham prisão preventiva decretada. Horas depois, a decisão foi revogada pelo então presidente da corte, Dias Toffoli. Em 2 de outubro, Marco Aurélio manteve a escrita ao cometer um novo e inexplicável absurdo: ordenou a libertação de André Oliveira Macedo, o “André do Rap”, um dos chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC), condenado em segunda instância e que permanecia na cadeia porque a Justiça havia ordenado sua prisão preventiva. André do Rap havia sido preso no fim do ano passado, em Angra dos Reis (RJ), na Operação Oversea – cujos processos no STF estão sob relatoria de Rosa Weber, o que teoricamente faria dela a responsável por analisar o habeas corpus, ainda que ele tivesse sido originalmente encaminhado pelos advogados do traficante a Marco Aurélio.
Em um trecho de suprema ingenuidade, o ministro ainda ordenou que André do Rap fosse advertido “da necessidade de permanecer em residência indicada ao Juízo, atendendo aos chamados judiciais, de informar possível transferência e de adotar a postura que se aguarda do cidadão integrado à sociedade”. O presidente do STF, Luiz Fux, até cassou a liminar de Marco Aurélio e emitiu novo mandado de prisão, mas já era tarde: o narcotraficante deixou a penitenciária de Presidente Venceslau (SP) na manhã de sábado, dia 11, e, para a surpresa de ninguém (a não ser, talvez, do responsável por sua liberação), não hesitou em efetuar sua “transferência” sem informá-la nem à Justiça, nem às autoridades que haviam demorado meses para capturá-lo, no fim do ano passado. Suspeita-se, agora, que ele esteja na Bolívia ou no Paraguai, de onde poderá dar tranquilamente suas ordens a um grupo que aterroriza o Brasil dentro e fora das prisões.
Como é possível que um ministro de suprema corte seja capaz de tamanho disparate? A chave está em uma pequena frase que passou a fazer parte da legislação brasileira no fim do ano passado. Ao contrário da prisão provisória, a prisão preventiva não tem duração máxima prevista em lei, podendo prorrogar-se indefinidamente. No entanto, o parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal afirma que ela terá de ser revista a cada 90 dias, exigindo “decisão fundamentada, de ofício”, para ser prorrogada, e foi neste artigo que Marco Aurélio se baseou para mandar soltar o narcotraficante, já que a renovação da prisão preventiva de André do Rap não havia ocorrido. A redação atual deste trecho foi inserida no CPP pelo Congresso Nacional durante a tramitação do pacote anticrime; o então ministro da Justiça, Sergio Moro, sugeriu ao presidente Jair Bolsonaro que vetasse o trecho, mas ele acabou sancionado.
É absolutamente estarrecedor que precisemos chegar a esse tipo de extremo para estimular discussões sobre como manter a sociedade brasileira livre da bandidagem
A necessidade de renovação periódica das prisões preventivas tem uma virtude: exige que a Justiça não se esqueça daqueles detentos que acabam lançados nas cadeias e passam meses, muitas vezes anos, até que sejam julgados – ainda que não seja este o caso específico de André do Rap, já condenado em duas instâncias. Em fevereiro deste ano, quando da divulgação do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, Moro argumentou que não havia nenhum excesso de presos provisórios no país, comparando a porcentagem brasileira, de 33%, com a de nações desenvolvidas. Ainda assim, são cerca de 250 mil pessoas nessa condição, um contingente enorme e cuja situação pede mais agilidade por parte da Justiça. No entanto, rever a cada 90 dias todas essas centenas de milhares de prisões preventivas coloca uma carga enorme sobre um Ministério Público e uma Justiça já muito sobrecarregados, o que nos faz questionar se não haveria formas melhores de resolver a questão dos presos provisórios sem impor obrigações desproporcionais ao MP e ao Judiciário.
Não são poucos os que defendem que, como a nova redação do artigo 316 torna ilegais as prisões preventivas que não são renovadas e devidamente justificadas, elas precisam ser relaxadas imediatamente, não deixando nenhuma outra alternativa ao magistrado que deseja seguir a lei e está diante de pedido semelhante. Mesmo por essa ótica, segundo a qual Marco Aurélio teria acertado ao determinar a soltura, ele já teria cometido um erro grotesco ao não impor ao traficante nenhuma das medidas cautelares elencadas no artigo 319 do CPP, como o uso de tornozeleira eletrônica e a obrigação de permanecer em sua residência à noite. Além disso, associações de juízes lembraram, por meio de notas, que há uma série de controvérsias sobre a aplicação deste trecho do CPP, especialmente a respeito de qual corte deve ser responsável pela análise do pedido de soltura.
Mas, ainda que Marco Aurélio se julgue plenamente amparado pelo artigo 316 do CPP para fazer o que fez, o fato é que este pequeno parágrafo não existe isoladamente; precisa ser lido em conjunto com todos os outros trechos que tratam da prisão preventiva, e foi isso que o ministro ignorou. Poderia, por exemplo, ter lido o artigo 312, segundo o qual “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” – ora, se um chefão de uma das facções mais perigosas do crime organizado brasileiro, condenado em duas instâncias, anteriormente foragido da Justiça, não se encaixa nos critérios descritos, mais ninguém se encaixaria. E não adianta o ministro se justificar afirmando que “não olha a capa do processo [em referência ao nome do preso], mas o conteúdo”, pois os motivos que levaram à condenação e à prisão preventiva de André do Rap pertencem justamente a esse conteúdo ao qual Marco Aurélio diz prestar tanta atenção.
A lei e o bom senso exigiam que o traficante seguisse preso, e tanto havia alternativas legais para manter encarcerado alguém tão perigoso que o Supremo Tribunal Federal já as usou. Em agosto deste ano, a Primeira Turma analisou um habeas corpus impetrado em favor de outros dois chefes do PCC sob a mesma alegação, de descumprimento do artigo 316 do CPP, e decidiu, por 4 a 1, remeter o caso às instâncias inferiores. Marco Aurélio havia sido o relator e defendido a soltura, mas foi voto vencido. Semelhante medida neste caso teria bastado para que os responsáveis por solicitar e autorizar a prorrogação da prisão preventiva tivessem percebido o cochilo e remediado a situação, mantendo o traficante preso. Mas, novamente, tendo a caneta na mão, Marco Aurélio preferiu atropelar o precedente estabelecido pela turma, assim como em 2018 atropelara a jurisprudência estabelecida em 2016 pelo plenário quanto à prisão após condenação em segunda instância, ainda por cima tomando uma decisão que provavelmente nem lhe cabia, dado não ser ele o relator dos processos da operação que prendeu André do Rap.
Como nenhum cuidado foi tomado, o megatraficante está solto – e já há outros aproveitando o precedente para requerer a liberdade – e provavelmente fora do país, o que não o impedirá de continuar sendo um perigo para os brasileiros. A repercussão deste caso pode até servir para acelerar uma definição sobre quais os procedimentos a seguir quando os prazos do artigo 316 do CPP forem descumpridos, e para voltar a jogar luz sobre a PEC da prisão após condenação em segunda instância, que caminha a passos lentos no Congresso – se essa medida estivesse em vigor, André do Rap nem precisaria estar sob prisão preventiva, pois já estaria cumprindo a pena à qual foi condenado. Mas é absolutamente estarrecedor que precisemos chegar a esse tipo de extremo para estimular discussões sobre como manter a sociedade brasileira livre da bandidagem.