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Editorial

O Marco Civil da Internet e o ativismo judicial do STF contra a liberdade de expressão

STF julgará constitucionalidade de artigo do Marco Civil da Internet.
Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF). (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Nesta quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal começa a analisar duas ações que questionam a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da responsabilização das empresas de tecnologia, como as de mídias sociais, por conteúdos publicados por terceiros. A julgar pelo que andam defendendo publicamente o governo federal e até mesmo alguns ministros do STF, já habituados ao péssimo costume de adiantar suas opiniões sobre temas que a corte terá de julgar, a liberdade de expressão no Brasil, que já vive tempos bastante difíceis, tem tudo para sair deste julgamento gravemente prejudicada, para não dizer ferida de morte.

A legislação atual, aprovada em 2014, prevê, no caput do artigo 19, que as empresas só serão responsabilizadas se deixarem de apagar conteúdos publicados por usuários após ordem judicial específica para sua remoção. O próprio Marco Civil da Internet já prevê duas exceções: violações de direitos autorais (art. 19, parágrafo 2.º) e a violação da intimidade de terceiros com a divulgação de imagens ou vídeos de nudez ou com teor erótico (art. 21) – nesses casos, havendo tal violação, basta a notificação para que a mídia social esteja obrigada a derrubar a publicação, em um modelo que se convencionou chamar de notice and takedown. A Procuradoria-Geral da República, o governo federal e os ministros do STF que costumam tratar do assunto publicamente acham que isso é muito pouco. A dúvida diz respeito a qual o caminho que os ministros escolherão.

Ministro do Supremo não escreve ou reescreve leis, ainda que sob o pretexto do “controle de constitucionalidade” – legislar é papel do Legislativo, e que inclusive já está previsto no Marco Civil da Internet

E aqui reside o primeiro problema, pois este é um debate que, a rigor, nem deveria estar sendo travado no STF. Como afirmou, de forma certeira, a Advocacia do Senado, “é certo que a circulação de ideias, notadamente nas plataformas digitais, pode ter a sua regulação aprimorada, notadamente para coibir o exercício abusivo da liberdade de expressão, mas é importante que esse debate ocorra no espaço plural e representativo do parlamento”. Ministro do Supremo não escreve ou reescreve leis, ainda que sob o pretexto do “controle de constitucionalidade” – legislar é papel do Legislativo, e que inclusive já está previsto no Marco Civil da Internet. Em março de 2023, os autores da ideia que levaria ao texto legal, em artigo na Folha de S.Paulo, afirmaram que a expressão “ressalvadas as disposições legais em contrário”, no caput do artigo 19, existe justamente para isso: dar ao legislador a chance de aprimorar a legislação à medida que os problemas vão sendo constatados.

Parece-nos, no entanto, altamente improvável que os ministros optem pela autocontenção. E é possível prever tal desfecho porque, em ocasiões anteriores, eles já demonstraram sua intenção de restringir a liberdade de expressão na internet. Todo o processo iniciado com as decisões abusivas tomadas no âmbito de inquéritos como o das fake news culminou com a Resolução 23.732/24 do TSE, adotada em fevereiro deste ano com vistas às eleições municipais de outubro, e que introduziu uma norma totalmente distante do espírito que norteou a criação do Marco Civil da Internet. Ao adicionar o artigo 9.º-E à Resolução 23.610/19, a corte impôs aos provedores uma prática diametralmente oposta à prevista no Marco Civil: o chamado “dever de cuidado”, pelo qual as empresas de mídia social são obrigadas a vigiar os conteúdos publicados e excluir conteúdos por conta própria – dispensando até mesmo a notificação, quanto mais decisão judicial – para escapar da responsabilização judicial.

Com isso, as empresas de mídia não foram transformadas simplesmente em publishers, mas em verdadeiras “polícias do pensamento”. Isso porque os conteúdos que o TSE gostaria de ver banidos foram listados sob as definições-coringa de “discurso de ódio” ou “atos antidemocráticos”, que na prática significam tudo o que um promotor, juiz ou militante desejem que signifique. Em outras palavras, o artigo 9.º-E nada mais fez que virar o Marco Civil da Internet do avesso. E, considerando que a resolução teve Cármen Lúcia como relatora e foi aprovada por unanimidade no plenário do TSE, incluindo mais dois ministros do STF – Alexandre de Moraes, que presidia a corte eleitoral, e Kassio Nunes Marques –, é possível que tal solução já tenha três votos a seu favor no julgamento prestes a começar.

Seja por meio da “polícia de pensamento” criada pelo TSE e que pode ser institucionalizada agora pelo STF, seja por uma solução menos drástica, com uma ampliação das hipóteses de notice and takedown, passando por uma série de outras alternativas intermediárias, é inegável que qualquer mudança feita pelo STF representará uma institucionalização do fim da liberdade de expressão no Brasil. Tal cerceamento é plataforma comum das alas ideologizadas do Ministério Público que praticamente exercem militância identitária, e de um governo federal e um STF constantemente criticados pelos cidadãos (justa ou injustamente, pouco importa). Que veículos de imprensa e outros formadores de opinião comprometidos com a liberdade de expressão não estejam percebendo o perigo, nem debatendo a fundo as possíveis consequências de cada possibilidade que está na mesa, é algo verdadeiramente assustador, e por isso, à medida que o julgamento for se desenrolando, apresentaremos neste espaço uma análise mais detalhada do que realmente está em jogo a partir desta quarta-feira.

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