Nesta quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal deve retomar o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que estabelece o grau de responsabilização dos provedores pelos conteúdos produzidos por terceiros. O ministro Luiz Fux, relator de outra das ações que estão sendo julgadas em conjunto, fará a leitura de seu voto. Por mais que em ocasiões anteriores ele tenha feito críticas ao mau costume do STF de tomar o lugar do Poder Legislativo, é muito difícil avaliar se ele votará bem, mantendo a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil e afirmando que qualquer mudança é responsabilidade do Congresso; se seguirá a linha extremamente nociva e liberticida de seu colega Dias Toffoli; ou se adotará algum tipo de posição intermediária.
Continua a ser surpreendente a ligeireza com que setores importantes da opinião pública e da sociedade civil receberam o “decálogo” estabelecido por Dias Toffoli ao fim de seu voto. O ministro pretende impor o “dever de cuidado” aos provedores em alguns casos – forçando-os a remover conteúdos por conta própria, sem depender nem mesmo de notificação, muito menos decisão judicial – e estabelecer o modelo de “notice and takedown” em muitas outras situações, nas quais a responsabilização da empresa passa a valer após a notificação da parte ofendida. Já alertamos que em ambos os casos o resultado inevitável será o fim da liberdade de expressão nas mídias sociais, que passarão a apagar (por iniciativa própria ou provocada por grupos militantes) tudo o que, mesmo sendo lícito, possa trazer algum tipo de problema jurídico à empresa. Mas, como aparentemente o aviso parece estar caindo em ouvidos moucos, propomos um exemplo bem prático sobre como uma das grandes prioridades nacionais pode ser prejudicada pelas regras propostas por Toffoli. Falamos do combate à corrupção, que o STF vem minando com o mesmo empenho com que tolhe a liberdade de expressão no Brasil.
Corruptos e corruptores terão o controle total sobre o que se diz a seu respeito nas mídias sociais. Bastará uma notificação para suprimir quaisquer referências negativas
Em nosso exemplo hipotético, um jornal publica uma denúncia grave de corrupção envolvendo autoridades – seja porque algum integrante do esquema resolveu procurar a imprensa para contar tudo o que sabe, por descontentamento ou vingança, seja como resultado de investigações de órgãos como a Polícia Federal ou o Ministério Público, pouco importa. Qualquer veículo de imprensa que tenha presença em mídias sociais também incluirá essa reportagem em seus perfis para ampliar o alcance do trabalho de seus jornalistas. Pelas regras atuais – inclusive as que estão no Marco Civil da Internet –, o político ou autoridade pode acionar o Judiciário, que avaliará a existência de algum crime contra a honra, bem como o interesse público envolvido na divulgação do escândalo; se perceber falha ou má-fé por parte do jornal, um juiz pode ordenar que a reportagem seja removida de seu site e que eventuais publicações em mídias sociais sejam apagadas.
Pelas regras sugeridas por Toffoli em seu voto, isso será passado. Ainda que no item 2.2 de seu “decálogo” o ministro tenha estabelecido uma salvaguarda para “plataformas e os blogs jornalísticos”, ele não estendeu a mesma proteção ao compartilhamento de conteúdos jornalísticos em mídias sociais. Se a reportagem for compartilhada no Instagram, no X, no Facebook ou em qualquer outra mídia social, seja nos perfis oficiais dos veículos de imprensa, seja nos perfis de usuários particulares, os políticos e quaisquer outras pessoas mencionadas podem notificar as mídias sociais alegando “danos à honra e à imagem”, e a partir deste momento a empresa fica suscetível à responsabilização civil caso não apague as publicações, segundo o item 2 do “decálogo” de Toffoli. Entre manter tais compartilhamentos em nome do interesse público, e apagá-los para se livrar de qualquer consequência jurídica, quem, em sã consciência, apostará que as Big Techs escolherão a primeira opção?
Em um país no qual a leitura de veículos de imprensa é hábito pouco difundido, e onde muitos brasileiros dizem recorrer às mídias sociais como fonte principal, quando não única, de informação, não é difícil adivinhar as consequências dessa censura: corruptos e corruptores terão o controle total sobre o que se diz a seu respeito nas mídias sociais. Bastará uma notificação para suprimir quaisquer referências negativas, mesmo aquelas amparadas em trabalho jornalístico responsável e criterioso. Ao transformar as Big Techs em árbitras do que deve ou não ser colocado no ar, com incentivo total à censura e incentivo zero à defesa do interesse público e das liberdades de expressão e de imprensa, as regras sugeridas por Toffoli darão aos protagonistas dos esquemas de corrupção uma bela blindagem que impedirá seus malfeitos de serem escrutinizados na grande ágora das mídias sociais.
Este é um exemplo talvez nem tão hipotético assim, dado o passado recente do país, e que está longe de ser a única consequência grave do cerceamento e da vigilância que Toffoli quer ver implantados no ambiente virtual. A crítica a instituições e pessoas públicas, o debate legítimo sobre ideias e comportamentos, o questionamento a atos do poder público, tudo estará sujeito à censura, sendo identificado e apagado pelo enorme Big Brother que as Big Techs terão de implantar para dar conta do “dever de cuidado”. O que escapar dessa moderação tampouco estará seguro, bastando que alguém se diga ofendido ou atingido em sua honra ou sua imagem para termos uma nova rodada de censura. Eis o que nos aguarda se o voto de Toffoli sair vencedor deste julgamento: o “cala-boca” em nome da “democracia”.
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