Se a bancada ligada à agropecuária votar unida, como promete fazer, tem número mais que suficiente para derrubar o recente veto do presidente Lula a trechos da lei que regulamenta o marco temporal para demarcação de terras indígenas. O Congresso havia reagido a uma decisão do Supremo Tribunal Federal que, além de usurpar (mais uma vez) prerrogativas do Legislativo, reverteu a própria jurisprudência, abolindo a data de 5 de outubro de 1988 como chave para a resolução de conflitos envolvendo a posse de terras reivindicadas por povos indígenas. Um projeto de lei aprovado pelos parlamentares no mesmo dia em que o STF publicava sua tese sobre o tema tornava explícito aquilo que a Constituição já afirmava, ainda que de modo implícito, pelo uso do presente do indicativo no caput de seu artigo 231: que “são reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Não havia nada de absurdo, nem de inconstitucional no projeto aprovado pelo Congresso. Além de deixar mais evidente a intenção do constituinte ao explicitar na lei a data de 5 de outubro de 1988, o texto não deixava de reconhecer a possibilidade de indígenas terem perdido de forma criminosa, antes dessa data, terras que eram suas por direito: de acordo com o projeto, o marco não seria aplicado em caso de “efetivo conflito possessório, iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data de promulgação da Constituição Federal, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada”.
O veto presidencial é uma mistura de retaliação ao agronegócio e endosso a concepções antropológicas que fazem das reservas indígenas “zoológicos humanos”
E Lula não se contentou apenas em vetar o coração do projeto. Ele foi além, impedindo ainda o pagamento de indenizações a quem tivesse ocupado de boa-fé terras que eram indígenas – algo que nem mesmo o STF teve a ousadia de prever, embora houvesse ministros adeptos do confisco – e a possibilidade de construção de rodovias nas áreas indígenas, algo que a deputada Silvia Waiãpi (PL-AP) criticou por representar uma “condenação ao isolamento” de várias comunidades indígenas, dificultando seu acesso a serviços de saúde e educação. Podemos afirmar que o veto presidencial é uma mistura de retaliação ao agronegócio e endosso a concepções antropológicas que fazem das reservas indígenas “zoológicos humanos”, negando aos povos originários o direito de se integrarem à sociedade se assim o desejarem, como se tivessem de ser mantidos eternamente na situação em que vivem.
Ao comentar os vetos na rede social X (o antigo Twitter), Lula teve a cara-de-pau de falar em “segurança jurídica”. Pois segurança é a última coisa que seu veto proporcionou no campo. A combinação entre a decisão do Supremo e o veto presidencial já deu início a conflitos. Terras produtivas, cujos proprietários afirmam ter documentação farta para comprovar a posse, foram invadidas no Paraná, e os índios recusando propostas de conciliação. Outras invasões foram evitadas apenas graças à mobilização rápida de fazendeiros e forças de segurança. Também no Paraná, há reivindicações de terras que podem comprometer 15% do território de um município, ou 20% das terras cultivadas de outro município cuja economia depende da agropecuária.
O STF e Lula deram um sinal verde para uma espécie de “vale-tudo” no campo. A análise dos vetos pelo Congresso, que poderia acontecer ainda nesta semana, como desejava a Frente Parlamentar da Agropecuária, deve ficar para novembro. Independentemente de quando ocorrer, fato é que a derrubada dos vetos restauraria a segurança jurídica no campo. Mas a bancada precisa ter em mente que esta restauração ainda será temporária, pois, mesmo que os vetos sejam derrubados e o marco temporal seja restabelecido na lei, a esquerda levará o caso ao Supremo, e não há nenhuma garantia de que o raio do ativismo judicial não cairá pela segunda vez no mesmo lugar.
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