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Editorial

Mauro Cid, a prisão e o sigilo

Mauro Cid foi levado para o Batalhão da Polícia do Exército, em Brasília, onde ficará preso por determinação de Moraes. (Foto: EFE/Andre Borges)

Em 21 de março, o Brasil tomou conhecimento do conteúdo de áudios em que o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro enquanto este ocupava a Presidência da República, fazia uma série de acusações bastante graves a respeito da forma como estão sendo conduzidas várias investigações contra o ex-presidente e aliados. Cid havia sido preso preventivamente em maio de 2023, por uma suposta falsificação de cartões de vacinação da família Bolsonaro, e deixou a cadeia no início de setembro do ano passado, após a homologação, pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, do acordo de delação premiada fechado com a Polícia Federal.

Nos áudios, obtidos pela revista Veja, Cid afirmava, basicamente, que teria sido coagido a falar o que as autoridades queriam ouvir. “Eles não queriam saber a verdade, eles queriam só que eu confirmasse a narrativa dele”, disse o tenente-coronel, acrescentando que os delegados “queriam que eu falasse coisa que eu não sei, que não aconteceu (...) discutiam que a minha versão não era a verdadeira, que não podia ter sido assim, que eu estava mentindo”, isso porque “já estão com a narrativa pronta deles, é só fechar, e eles querem o máximo possível de gente para confirmar a narrativa deles”. Sobre Alexandre de Moraes, Cid afirmou que o ministro do STF “é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele quiser. Com Ministério Público, sem Ministério Público, com acusação, sem acusação”, e que Moraes “já tem a sentença dele pronta. Só tá esperando passar um tempo. O momento que ele achar conveniente, denuncia todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende todo mundo”.

O sigilo sobre a decisão de prender novamente Mauro Cid permite que levantemos uma hipótese bastante preocupante: a de que a prisão preventiva esteja sendo usada como castigo por “mau comportamento” ou como meio de garantir uma colaboração

Ato contínuo, Cid foi chamado a prestar esclarecimentos diante do desembargador Airton Vieira – juiz instrutor designado por Alexandre de Moraes. Na audiência, mudou completamente o tom: reafirmou o que dissera na delação, negou a coação e atribuiu o conteúdo a um “desabafo” motivado pelas dificuldades financeiras e familiares por que passa – nos áudios, ele reclama por ser o único a ter perdido tudo, enquanto “ninguém perdeu carreira, ninguém perdeu vida financeira como eu perdi. Todo mundo já era quatro estrelas, já tinha atingido o topo, né? O presidente teve Pix de milhões, ficou milionário, né?”, disse; a última referência era uma menção a Bolsonaro. As explicações de nada adiantaram: na tarde do dia 22, Cid voltou para a prisão, cumprida em um batalhão do Exército, por ordem de Alexandre de Moraes.

O episódio todo ainda é marcado mais por dúvidas que por certezas, a começar por qual seria a verdade sobre as circunstâncias da delação de Mauro Cid – se ele realmente colaborou de livre e espontânea vontade, como dissera ao STF, ou se foi coagido, como disse nos áudios. Tampouco há como saber se o tenente-coronel desabafou com seu interlocutor (ainda desconhecido) sabendo, ou até desejando, que o conteúdo da conversa poderia ser vazado – e quais seriam suas intenções com isso, já que a divulgação poderia lhe trazer problemas, como realmente trouxe –, ou se não pretendia que os áudios se tornassem públicos, tendo sido traído por alguém em quem confiava. E, por fim, não se sabe qual foi exatamente o fundamento para que Cid fosse novamente preso, já que a decisão de Moraes está sob sigilo. O gabinete de Moraes se limitou a dizer que houve obstrução à Justiça e descumprimento de medidas cautelares, sem no entanto informar quais delas teriam sido burladas – delegados da PF disseram a jornalistas que Cid teria violado acordos de confidencialidade.

E é este sigilo que permite levantarmos uma hipótese bastante preocupante: a de que a prisão preventiva esteja sendo usada como castigo por “mau comportamento” ou como meio de garantir uma colaboração, mesmo que involuntária, do tenente-coronel e impedir que ele volte a colocar em xeque as investigações, já que, em caso de coação, todas as informações coletadas por meio da delação são tornadas imprestáveis para a Justiça – ou ao menos deveriam sê-lo de acordo com as leis processuais brasileiras, embora hoje o que realmente vale é a vontade dos ministros supremos, e não o que diz a lei. E não é à toa que lançamos esta hipótese: a prisão preventiva foi amplamente utilizada por Moraes ao longo de todo o ano de 2023 contra os manifestantes do 8 de janeiro, mantidos por vários meses na Papuda e na Colmeia ainda que não houvesse indício concreto algum contra eles, ou ainda que já não representassem risco algum. Por muito menos do que fizeram esses cidadãos brasileiros, ou por muito menos do que possa ter feito Mauro Cid, megatraficantes e megacorruptos já foram soltos.

Contraditoriamente, esse uso abusivo da prisão preventiva vem da mesma corte cujos membros acusaram injustamente a Operação Lava Jato de usar essa prática. Gilmar Mendes, o maior detrator da Lava Jato no STF, repetiu incessantemente ao longo de anos o mote da prisão preventiva como “tortura” para conseguir colaborações. Mais recentemente, Dias Toffoli anulou acordos de leniência firmados pela Odebrecht alegando que a empreiteira tinha sido coagida a cooperar, ainda que as caríssimas bancas de advogados que ajudaram a fechar tais acordos jamais tenham denunciado e continuem a negar a existência desse tipo de pressão.

É mais que evidente o abuso da prisão preventiva fora das circunstâncias previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal; usá-la sem que esses requisitos estejam presentes, como castigo, para transformar alguém em troféu, para forçar uma colaboração ou mesmo para simplesmente antecipar um cumprimento de pena é, de fato, “coisa de pervertidos”, como definiu Gilmar Mendes. Como saber se isso está ocorrendo no caso de Mauro Cid? A resposta é extremamente simples: que o STF contrarie a cultura de sigilo que tem marcado seus inquéritos e, como já fez com a íntegra do depoimento do tenente-coronel em 22 de março, divulgue o texto completo da decisão que o mandou de volta para a prisão. Só assim, conhecendo os fundamentos usados por Moraes, a sociedade brasileira poderá avaliar se as justificativas realmente se sustentam, ou se estamos, mais uma vez, diante um arbítrio cometido “em nome da democracia”.

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