A ofensiva das chamadas Big Techs contra a liberdade de expressão na internet teve três novos capítulos recentes no Brasil envolvendo figuras conhecidas ou veículos de comunicação, mostrando que a discussão sobre a natureza dessas empresas e as regras que elas devem seguir é tão urgente por aqui quanto nos Estados Unidos, onde o então presidente Donald Trump se tornou, dias atrás, o usuário mais importante a ter suas contas apagadas em várias mídias sociais.
A economista Renata Barreto teve sua conta no Instagram (que pertence ao Facebook, de Mark Zuckerberg) suspensa temporariamente, e ficou impedida de realizar lives. No próprio Facebook, o colunista da Gazeta do Povo Carlos Ramalhete teve sua conta suspensa pela terceira vez, episódio que ele relatou em sua coluna mais recente. E o YouTube (pertencente ao Google) cancelou definitivamente as contas do site Terça Livre, defensor do governo de Jair Bolsonaro. Tudo isso em um espaço de poucos dias – a ação contra o Terça Livre ocorreu na última quarta-feira, dia 3.
Cada caso é grave à sua maneira, mas o mais surreal, ou bizarro, é certamente o de Renata Barreto, que fez seu relato à colunista Cristina Graeml, da Gazeta do Povo. A economista havia compartilhado duas notícias, uma da própria Gazeta e outra da CNN Brasil, sobre o anúncio, feito pelo ditador venezuelano Nicolás Maduro, do surgimento de um medicamento contra a Covid-19. Ela não compartilhara as notícias para endossar a solução mágica, mas para criticar o bolivariano; mesmo assim, o Instagram classificou as postagens da economista como “notícia falsa e perigosa”, embora estivesse fora de qualquer dúvida o fato de que Maduro realmente havia dito ter nas mãos a cura para o coronavírus. Os tuítes do ditador sobre o tema, aliás, podem ser vistos tranquilamente sem nenhum tipo de aviso sobre a ausência de comprovação científica da eficácia do Carvativir, “las gotitas milagrosas de José Gregório Hernández”. Renata ainda contou que já sofreu uma suspensão maior, de três meses, sob a alegação de “discurso de ódio” por ter simplesmente mostrado que parte do governo da Palestina era dominado por uma organização terrorista, o Hamas.
Quando uma plataforma passa a controlar conteúdo com “critérios próprios” sem a menor transparência, cassando a liberdade de expressão de seus usuários sem que eles tenham violado a lei, é a própria plataforma quem passa a violar a lei
Ramalhete mostrou, em sua coluna, como compartilhamentos sem nenhum tipo de intenção daninha acabam considerados perigosos não por pessoas, mas por algoritmos, aos quais se dá o enorme poder de decidir quem pode e quem não pode publicar em cada plataforma. Os algoritmos também têm um papel relevante no caso de Renata Barreto; a economista soube que seu perfil já é naturalmente “vigiado” pelo Instagram por receber muitas denúncias, mostrando que as máquinas são simplesmente incapazes de diferenciar avisos sobre violações reais de uma campanha difamatória de denúncias organizada por militantes insatisfeitos com as opiniões publicadas em determinado perfil, uma limitação que, aparentemente, os humanos por trás das decisões não parecem interessados em sanar.
Por fim, há o caso, também bastante grave, do banimento do Terça Livre do YouTube, após nova ação da milícia digital Sleeping Giants Brasil, especializada em chantagear anunciantes de sites que propagam aquilo que os chantagistas consideram fake news ou discurso de ódio – um conceito bastante arbitrário, já que é praxe do Sleeping Giants poupar um lado do espectro ideológico, por mais mentiroso ou desrespeitoso que seja. A plataforma de vídeos, em nota oficial, não foi capaz de explicar o que, exatamente, os responsáveis pelo site haviam feito – o que é o costume em muitos casos de suspensão ou banimento, quando usuários não recebem nenhuma informação sobre o que havia de ofensivo em suas postagens, isso quando chegam a saber qual foi o texto específico que motivou a punição. “Todos os conteúdos no YouTube precisam seguir nossas diretrizes de comunidade. Contamos com uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar conteúdo suspeito e agimos rapidamente sobre aqueles que estão em desacordo com nossas políticas. O YouTube também se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios (...)”, diz a nota.
Esta expressão – “nossos próprios critérios” – é a chave da discussão. O que são, afinal, plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube? Toda a proteção legal de que essas empresas gozam em vários países, como o fato de não poderem ser legalmente responsabilizadas pelo conteúdo que seus usuários publicam nas plataformas, deriva do fato de elas serem conceituadas como simples intermediários. É o caso, por exemplo, da salvaguarda proporcionada pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet: só há responsabilização do provedor ou plataforma se ela desobedecer a ordem judicial de remoção de conteúdo. Mas, nessas condições, as empresas não podem ter “os próprios critérios”, como alega o YouTube, a não ser aqueles definidos pela lei – muito menos critérios nada claros ou transparentes, como ocorre hoje. Remove-se o que claramente constituir crime; de resto, vale o que está escrito no artigo 9.º do mesmo Marco Civil da Internet: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação” (grifo nosso), levando-se em consideração, ainda, o artigo 8.º, segundo o qual “A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet” (grifo nosso).
É plenamente justificado, portanto, remover calúnias, textos racistas ou imagens de pornografia infantil – e ninguém haverá de criticar uma mídia social que atue com rigor nesses casos. Mas estamos diante de algo muito diferente quando uma plataforma passa a controlar conteúdo com “critérios próprios” sem a menor transparência, cassando a liberdade de expressão de seus usuários sem que eles tenham violado a lei. Quem passa a violar a lei, nestes casos, é a própria plataforma – e não deixa de ser curioso que Renata Barreto tenha tido seu acesso restaurado após seu advogado enviar uma notificação extrajudicial ao Instagram, um passo anterior à abertura de um processo judicial.
A tendência das Big Techs continua a ser a de querer controlar conteúdos – ou seja, agir como editores ou publishers – enquanto mantêm o status legal de simples intermediários para escapar da responsabilização na Justiça. Uma postura hipócrita que terá de ser enfrentada mais cedo ou mais tarde pelo Judiciário, seja no Brasil ou em outros países. Mas, supondo que no futuro as empresas assumam de vez seu papel de editores, inclusive sujeitando-se às consequências legais desse fato, o problema estaria resolvido? Longe disso. Já está bastante claro que as Big Techs formaram um oligopólio disposto a sufocar a concorrência, como se viu no caso do aplicativo Parler. Para a liberdade de expressão, esse oligopólio assume um caráter ainda mais ameaçador porque ele compartilha de uma cartilha ideológica única. Se considerarmos que, segundo o artigo 7.º do Marco Civil da Internet, “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania”, temos um grupo de “sub-cidadãos”, aqueles que podem ter sua voz cassada a qualquer momento ao desagradar a intelligentsia que administra as mídias sociais.
Há alternativa? Mesmo sob um ponto de vista liberal, há intervenções estatais que são aceitáveis neste caso. Pelo aspecto puramente econômico, a própria existência do oligopólio, uma distorção de mercado, justifica ações que garantam a concorrência – e nos Estados Unidos há diversas ações judiciais pedindo que o Facebook tenha de se desfazer tanto do Instagram quanto do WhatsApp usando como argumento apenas o fomento à concorrência, sem entrar em questões de orientação ideológica por trás da censura a publicações ou contas. E a preservação do direito à liberdade de expressão – que o Marco Civil da Internet também trata como fundamental em seus artigos 2.º e 3.º, mas é um valor universal que não está protegido apenas pela lei brasileira – também é razão suficiente para uma ação estatal que regule a pretensão de controle de conteúdo das mídias sociais. Não se trata de fazer das mídias sociais uma “terra de ninguém” onde a regra é o vale-tudo, mas de estimular o senso de responsabilidade dos próprios usuários enquanto se preserva o grande bem da liberdade de expressão.
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