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Editorial 1

Mito do remédio amargo

Em pelo menos uma dezena de cidades do país, juízes determinaram que quem tem menos de 18 anos não pode ficar na rua depois das 23 horas, ou coisa que va­lha. As normas mudam de endereço para en­­de­­reço. Diferem de Fernandópolis, no interior de São Paulo, onde a medida foi implantada há qua­­tro anos, a Cambará, no Norte Pioneiro, on­­de ainda ganha forma. Em comum, aqui e ali, é que não soam sirenes no meio da noite nem se tem notícia de que uma legião de crianças e adolescen­­tes, em bando, apressam o passo para não des­­cum­­prir a ordem judicial. Mesmo assim, à revelia de suas boas maneiras, a novidade foi batiza­­da de "toque de recolher", uma expressão autoritária, bélica, algo cinematográfica, mas que serve feito uma luva para traduzir os efeitos que provoca.

"Toque de recolher" remete de imediato a lugares como Bagdá, Honduras, às favelas cariocas ou à linha imaginária que divide em Céu e em Inferno a Vila Trindade, no Cajuru, em Curi­­tiba. É um bom nome para um filme de ação, e o pior dos batismos para um programa que se pretende social. Por essas e outras, tudo indica que a parcela da população brasileira que quer trancafiar os jovens em casa os vê estritamente como protagonistas de um mundo em desalinho. Não é um bom sinal.

Sob o pretexto de diminuir a criminalidade en­­tre os jovens, os juízes nada mais fazem do que dar marcha à ré nos princípios que regem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre o qual pesam pelo menos duas décadas de conhecimento adquirido. A abordagem policial, o vexame de ser apreendido e o constrangimento de ver os pais serem chamados às delegacias, para falar de apenas três situações prováveis, nada tem de protetivo. Ao contrário, segre­­ga e expõe, reforçando o rótulo de que a juventude brasileira não passa de uma gangue de mar­­manjos saída de um romance de Jorge Amado.

Não bastasse, o toque de recolher é despropor­­cional. Nessas terras onde, diz-se, não havia pe­­cado, os que contam menos de 18 anos são mais agredidos do que agridem, são mais vítimas do que algozes. Os números o comprovam. É lúcida a ponderação do promotor paulistano Luiz An­­tônio Miguel Pereira ao lembrar que apenas 0,06% da população jovem está envolvida em atos contra a sociedade. Aplicar medida tão se­­vera equivale a vigiar e punir, para bons entendedores.

O problema é que já vai longe essa conversa. O "toque" ganhou popularidade. Chegou de mansinho, desafiou as recomendações em contrário do Ministério Público, instalou-se em redutos do interior próspero e rígido, dado a expulsar mendigos. Hoje, impõe-se como uma solução fácil para um problema gigantesco. E já toma feitio de um movimento. Eis o perigo. A medida está sendo estudada em cerca de 20 cidades paulistas e foi adotada em três. Estados como Minas Gerais, Paraná, Bahia e Paraíba seguem atrás. No Paraná, há simpatizantes em Palotina, Marechal Cândido Rondon e Paranavaí. No mu­­nicípio de Canindé, no Ceará, o programa já es­­tá, inclusive, revestido de docilidade, ga­­nhan­­do a alcunha de "toque de acolher".

Motivos? Hoje, um dos maiores trunfos dos defensores da restrição de horário são as estatísticas alvissareiras alcançadas nas cidades que adotaram a medida. Aponta-se em algumas delas redução de 80% da criminalidade juvenil, assim como despencaram as notificações ao conselho tutelar em cidades vigiadas após as 23 horas.

Essa "política de resultados", contudo, não resiste a uma análise mais apurada. O toque de recolher carrega na garupa uma imagem enviesada do jovem. Oprime sob a desculpa de resguardar. Como manifestou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Co­­nan­­da, a adoção do toque em mais cidades equivale a voltar aos tempos da "carrocinha dos me­­nores" e à Doutrina da Situação Irregular, do Có­­digo de Menores. Os fantasmas se divertem.

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