Neste Brasil orwelliano e pós-democrático, em que um cidadão corre o risco de ser investigado e até punido por fazer perguntas inconvenientes, manifestar certas ideias de forma privada, conjecturar determinadas atitudes (e abandonar a ideia muito antes que ela pudesse se concretizar) e até mesmo seguir o político “errado” nas mídias sociais, um novo “crime” acaba de ser acrescentado a este novo Código Penal que vem sendo construído desde 2019: entrevistar pessoas proscritas pelo atual regime togado. Ao dar espaço ao jornalista Allan dos Santos – que vive nos Estados Unidos, tem contra si ordem de prisão emitida por Alexandre de Moraes e cuja extradição o governo brasileiro não tem conseguido –, o influenciador e YouTuber Bruno Monteiro Aiub, o Monark, incorreu novamente na ira do relator dos abusivos inquéritos das fake news e das “milícias digitais”.
A entrevista foi citada por Moraes na decisão em que multou Monark em R$ 300 mil e ordenou a abertura de um inquérito para apurar um suposto crime de desobediência, já que o influenciador teria criado novas contas em mídias sociais para burlar uma decisão anterior que já o censurava. A nova decisão vem repleta de citações de Monark – muitas com críticas aos procedimentos nada democráticos de Moraes, convenientemente transformados em “ataques à suprema corte” –, repete os clichês cheios de exclamações e negritos que o ministro se acostumou a colar em tudo o que escreve, e só não consegue fazer o essencial em um país onde vigoram o império da lei e o devido processo legal: citar um único artigo do Código Penal (o brasileiro, não o moraesiano) que Monark tenha descumprido a não ser o 359, que tipifica a “desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito” e pune com multa ou prisão de até dois anos quem “exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial”.
O que temos diante de nós no caso Monark é uma situação evidente de censura prévia reiterada e inconstitucional, calando sua voz em todas as mídias sociais, além de uma estratégia de intimidação pura
E aqui reside mais um dos absurdos desta decisão mais recente. Segundo os juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, Monark não poderia ser investigado nem mesmo pelo crime de desobediência, pois existe jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, se a ordem judicial original já prevê punição em caso de descumprimento, fica afastada a incidência do tipo penal descrito no artigo 359 do Código Penal. E foi justamente o que ocorreu em junho, quando Moraes impôs multa diária de R$ 10 mil caso o influenciador não se calasse. Este é um detalhe processual importante, mas o caráter nitidamente antidemocrático da decisão de Moraes vai muito além do desrespeito à jurisprudência dos tribunais superiores.
O que temos diante de nós no caso Monark é uma situação evidente de censura prévia reiterada e inconstitucional, calando sua voz em todas as mídias sociais, além de uma estratégia de intimidação pura, que se pode notar pela dimensão bastante desproporcional da multa aplicada e pela intenção clara de privar Monark dos meios pelos quais ele obtém seu sustento. Tudo isso, repita-se, sem que Alexandre de Moraes seja capaz de demonstrar que lei Monark chegou a violar com suas opiniões ou entrevistas. E tudo isso sem que se levante, em defesa do influenciador, praticamente nenhuma voz na imprensa ou entre formadores de opinião que dizem zelar pela liberdade de expressão no Brasil – entre as raras exceções está o jornalista Glenn Greenwald, que, mesmo tendo preferências políticas à esquerda, vem apontado o autoritarismo dessa e de outras decisões de Moraes. “Ele [Monark] foi totalmente removido da internet e não tem mais como ganhar a vida. (…) E ainda assim ele nunca foi acusado de nada. Ele não pode falar sobre política, ele está amordaçado”, disse o fundador do The Intercept, site do qual se afastou em 2020.
“Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias!”, diz uma das frases-clichê que Moraes usa rotineiramente. Pois “liberdade de destruição da democracia” é justamente a liberdade que o ministro do STF arrogou para si. “Nós já não estamos numa situação de Estado Democrático de Direito pleno. Estamos em situação híbrida, entre um regime autoritário e o regime do Estado de Direito. É um Estado de Direito que vai negando cada vez mais os seus fundamentos”, disse à Gazeta do Povo o constitucionalista Alessandro Chiarottino. Concorde-se ou não com as definições do jurista, o certo é que a censura prévia já se tornou rotina, que a liberdade de expressão vive uma crise seríssima, que o aparato judicial agora investiga e pune “crimes de opinião” e “crimes de cogitação”, que acusações em massa violam o devido processo legal e a ampla defesa. Dê-se a isso o nome que se desejar, mas não o de “democracia plena”.
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