No fim da semana passada, o ministro Alexandre de Moraes, relator das ações penais do 8 de janeiro no Supremo Tribunal Federal, fez algo inédito: votou pela absolvição de um réu. O morador de rua Geraldo Filipe da Silva passou inacreditáveis 11 meses na Papuda, após ser preso na Praça dos Três Poderes, e só recuperou a liberdade, com tornozeleira eletrônica, em novembro do ano passado, depois que um laudo da Polícia Federal atestou que ele não havia incendiado uma viatura, ato que ele supostamente teria cometido, segundo manifestantes que o apontaram como “infiltrado”. A defesa do sem-teto alegou que Silva estava na Praça dos Três Poderes por mera curiosidade, sendo preso pela PF ao tentar deixar o local quando o protesto virou vandalismo.
No seu voto, durante julgamento realizado em plenário virtual, Moraes afirmou “não existir prova suficiente para a condenação”, uma frase curta demais para o tamanho do abuso cometido graças ao desleixo completo de praticamente todas as autoridades envolvidas. Culpa da Procuradoria-Geral da República, que simplesmente abriu mão de fazer seu trabalho e ignorou a necessidade da individualização da conduta, um princípio básico do devido processo legal pelo qual cada um só pode ser julgado pelo que efetivamente fez, preferindo em vez disso adotar uma interpretação forçada da tese do “crime multitudinário”. Culpa dos ministros do STF que votaram por aceitar a denúncia inepta, escancarando a contradição que há em “defender a democracia” passando por cima do direito à ampla defesa. Se em algum momento PGR ou STF tivessem tido um mínimo de cuidado, teriam percebido muito antes que não havia nem mesmo como oferecer denúncia, quanto mais aceitá-la. A mera absolvição está muito longe de reparar os 11 meses perdidos pelo morador de rua na Papuda.
Silva é exceção à regra apenas por estar na iminência de ser absolvido. Assim como ele, muitos outros passaram longos meses presos, foram denunciados e viraram réus sem terem suas condutas individualizadas – mas estão sendo condenados
Mas não podemos tratar o caso do sem-teto como uma espécie de ponto fora da curva, como se ele tivesse sido o único injustiçado entre as centenas de réus que estão sendo julgados pelo Supremo, preso sem motivo e acusado sem provas. Desde que os julgamentos começaram, a Gazeta do Povo tem apontado as falhas gritantes que marcam os votos de Moraes, seguidos pela maioria dos seus colegas de Supremo. Cidadãos brasileiros estão sendo condenados a penas superiores a 15 anos de prisão por crimes graves, como tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e associação criminosa, além de dano ao patrimônio da União e deterioração do patrimônio tombado, muitas vezes sem haver absolutamente nenhuma prova que ateste o vandalismo cometido ou intenções golpistas. Em alguns votos, Moraes chega a mencionar objetos apreendidos não com os réus, mas com outras pessoas sem nenhuma ligação com os acusados.
Em seu voto no caso de Silva, Moraes abandona o copia-e-cola habitual de outros votos pela condenação de réus para fazer considerações que endossamos completamente. “A presunção de inocência condiciona toda condenação a uma atividade probatória produzida pela acusação e veda, taxativamente, a condenação, inexistindo as necessárias provas, devendo o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio”, afirma ele. O ministro ainda acrescenta que “o Estado de Direito não tolera meras conjecturas e ilações do órgão de acusação para fundamento condenatório em ação penal, pois a prova deve ser robusta, consistente, apta e capaz de afastar a odiosa insegurança jurídica” e chama de “odioso” o “afastamento de direitos e garantias individuais e a imposição de sanções sem o devido processo legal”.
Como é possível, então, que o mesmo ministro capaz de escrever essas linhas esteja condenando os demais réus sem prova “robusta” e “consistente”, com base em “meras conjecturas e ilações” a respeito de suas supostas intenções golpistas? É especialmente relevante destacar que Moraes admite haver “dúvida razoável quanto à autoria delitiva”, referindo-se ao incêndio da viatura, devido a depoimentos contraditórios de policias, mas que ela não era suficiente para a condenação. Enquanto isso, outros são condenados sem elemento algum que permita tal dúvida.
Se o sem-teto Silva é exceção à regra, portanto, ele o é unicamente por estar na iminência de ser absolvido. Assim como ele, muitos outros passaram longos meses na Papuda ou na Colmeia sem preencher os requisitos legais para a prisão preventiva, foram denunciados e viraram réus sem terem suas condutas individualizadas – mas estes estão sendo condenados. A injustiça sofrida pelo morador de rua está prestes a terminar; a injustiça sofrida por centenas de outros brasileiros cujo único “crime” comprovado é o de estar no lugar errado, na hora errada e na companhia errada está apenas começando e se prolongará por muitos outros anos.
Os que efetivamente destruíram patrimônio público no 8 de janeiro precisam ser condenados por esses crimes, e os que efetivamente tramavam uma ruptura institucional e quiseram usar o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes para conseguir esse objetivo precisam ser condenados por esses crimes, mas sempre garantindo-se o direito à ampla defesa e com um conjunto probatório sólido que embase as condenações. Não é isso, no entanto, o que vem ocorrendo. E pouco importa, do ponto de vista do processo penal, que Silva tenha sido eleitor de Lula, como alegou sua defesa, enquanto os demais eram apoiadores de Jair Bolsonaro: diante da Justiça, vale apenas o que cada um efetivamente fez, e por esse prisma os argumentos que levaram Moraes a votar pela absolvição do morador de rua se encaixariam perfeitamente em inúmeros outros casos nos quais o relator votou pela condenação e pela imposição de penas pesadas. Isso, como já afirmamos, não é justiça, mas um justiçamento que escolhe brasileiros como troféus de caça a serem exibidos pelos autoproclamados “salvadores da democracia”.