Cid Gomes é socorrido em Sobral (CE) após ser baleado.| Foto: Reprodução/Sobral 24hs
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Entre policiais que cruzam os braços, deixando uma população refém da violência, e um senador que tenta atropelar amotinados e familiares com uma retroescavadeira, difícil avaliar quem estava mais errado no surreal episódio ocorrido na cidade cearense de Sobral, na última quarta-feira. O ex-governador e senador licenciado Cid Gomes (PDT-CE), pilotando uma retroescavadeira, avançou contra um portão de metal do quartel local da Polícia Militar, diante do qual estavam policiais amotinados – momentos antes, ele já tinha sido agredido com um soco de um homem encapuzado após dar aos policiais “cinco minutos para pegarem seus parentes, esposas e filhos e sair daqui em paz”. Só não houve um desastre de grandes proporções porque Gomes parou a máquina que dirigia ao levar dois tiros de arma de fogo calibre ponto 40, padrão da PM cearense. O político foi hospitalizado, mas não corre risco de morrer.

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Por mais que policiais estejam insatisfeitos com suas condições de trabalho ou seus vencimentos, motins são inaceitáveis por um motivo muito simples: sem as forças de segurança, não há manutenção possível da lei e da ordem; reina a anarquia, com ameaça real ao Estado Democrático de Direito. Aqui, não é apropriado nem mesmo o regime de contingente reduzido, que se costuma empregar quando outros serviços essenciais param. Tanto é assim que militares estão constitucionalmente proibidos, pelo artigo 142 da Carta Magna, de cruzar os braços. Por isso, quando eventos como o do Ceará ocorrem, não se fala em greve (que é um direito constitucionalmente protegido), mas em motim. Em abril de 2017, o Supremo Tribunal Federal acertou ao decidir que policiais civis, embora não sejam o alvo da vedação constitucional, também não podem parar. Afinal, o trabalho das forças de segurança, além de não ter paralelo na iniciativa privada, é essencial para a manutenção do próprio Estado. “É o braço armado do Estado. E o Estado não faz greve. O Estado em greve é um Estado anárquico”, afirmou Alexandre de Moraes, autor do voto vencedor. Quando um policial, civil ou militar, cruza os braços, nega a razão de ser de sua corporação.

O encontro entre duas forças dispostas a se impor na base da pancadaria só poderia ter o desfecho que teve

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Mesmo assim, motins policiais continuam a ocorrer, especialmente por meio de artimanhas que envolvem os familiares dos militares, colocados diante da entrada dos batalhões para “bloquear” a saída de policiais que supostamente estariam dispostos a trabalhar. A Justiça tem sido rápida para identificar esses expedientes e punir as associações de policiais, mas o Poder Legislativo tem sido historicamente leniente com amotinados. Por ocasião do motim de policiais no Espírito Santo, no início de 2017, o jornalista Elio Gaspari lembrou que, entre 2011 e 2016, o Congresso Nacional havia aprovado dois projetos de lei que anistiavam policiais e bombeiros envolvidos em 33 episódios de motim. Com esse tipo de respaldo, não surpreende que militares continuem chantageando a população, deixando-a à mercê de bandidos como meio de ver suas reivindicações atendidas.

O caso cearense, além disso, tem uma particularidade: a atuação forte das milícias. Sobral chegou a viver um toque de recolher ordenado não por traficantes, mas por milicianos que fizeram o anúncio a bordo de veículos da PM. Em pelo menos um caso, houve represálias contra cidadãos que se pronunciaram em mídias sociais contra o motim. Em 2012, quando a PM cearense também cruzou os braços, a família da desembargadora que ordenou o retorno dos policiais ao trabalho foi ameaçada de morte.

Nada disso, no entanto, dá a Cid Gomes a menor justificativa para fazer o que fez. Se em algum momento ele tentou apelar à conciliação, começou a deixar de ter razão ao dar “cinco minutos” aos amotinados, e a perdeu totalmente quando avançou sobre o bloqueio montado diante do quartel. Os noticiários da noite de quarta-feira poderiam estar relatando a morte de integrantes de forças de segurança – e, talvez, de seus familiares –, atropelados por uma retroescavadeira pilotada por um senador da República. Por que Cid Gomes imaginou que poderia fazer o que fez? Em várias ocasiões o senador deixou evidente sua pouca paciência e pouco apreço pelo diálogo. Se o soco recebido foi uma “gota d’água” que disparou um episódio de destempero extremo, ou se há uma convicção mais profunda de que o exercício do poder lhe dá direitos extraordinários, inclusive direito de usar a truculência para fazer valer suas posições, é difícil saber; certo é que o meio encontrado foi completamente insensato e desproporcional. Retroescavadeira não é argumento, muito menos quando usada com o intuito de ferir e matar. Esse encontro entre duas forças dispostas a se impor na base da pancadaria só poderia ter o desfecho que teve – ou ainda pior, já que tanto o senador quanto as pessoas que ele pretendia atropelar poderiam ter perdido a vida.

Tais episódios, que de novo não têm nada, demonstram uma erosão da cultura democrática no país. Em nome dos próprios interesses, desconsidera-se os direitos dos demais – no caso, o direito à segurança e até mesmo o direito à vida – e despreza-se qualquer possibilidade de resolver satisfatoriamente as controvérsias por meio do diálogo. Não há heróis nem mártires no confronto de Sobral; há apenas vilões incapazes de entender como uma democracia funciona.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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