Os limites da liberdade religiosa e da liberdade de expressão estão sendo novamente testados graças a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) contra uma escola confessional católica do município de Itaúna, acusada de publicar um informativo considerado ofensivo à população homossexual e transexual. O MP pede que a escola seja condenada a pagar R$ 500 mil por “danos morais coletivos” – o dinheiro seria destinado a entidades de defesa dos direitos da população LGBT –, além de custear a publicação de material “contranarrativo ao discurso de ódio praticado”. A ação tem por base a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que equiparou a homofobia ao racismo, e mostra como a decisão em si, mal fundamentada, e a sua aplicação por instituições como o MP e o Judiciário estão efetivamente criando tabus, como a Gazeta do Povo já havia previsto ainda antes do resultado final do julgamento.
O informativo em tela foi enviado pela escola única e exclusivamente aos pais dos alunos em janeiro deste ano, e tinha como objetivo alertá-los para o uso corriqueiro de uma série de imagens que simbolizariam valores contrários aos do cristianismo – caso, por exemplo, da icônica foto do comunista argentino Ernesto Che Guevara. O colégio ainda citou imagens de caveiras, que representariam a “cultura da morte”; e, por fim, o que motivou a ação civil pública, ainda alertou sobre o uso de arco-íris e unicórnios. “O arco-íris, que é um símbolo de aliança de Deus com seu povo, foi raptado pela militância LGBT”, afirma o colégio; em outra passagem, o informativo afirma que o unicórnio “é sempre representado como uma figura doce e encantadora. Sua origem é diversa, mas o perigo é o que ele representa atualmente, pois também é utilizado por personalidades para identificar alguém de gênero não binário”.
Na prática, “discurso de ódio” já não é algo que objetivamente estimule a violência ou a discriminação contra uma pessoa ou um grupo, mas qualquer ideia da qual se discorde
O Ministério Público, acionado pela deputada federal Áurea Carolina (PSol), pela Aliança Nacional LGBTI e por outras pessoas e entidades, enxergou no informativo a existência de “discurso de ódio”, o que demonstra um indevido alargamento deste conceito para, no fim das contas, abarcar qualquer manifestação da qual se discorde, ainda por cima fazendo-o de forma bastante subjetiva. Afinal, uma das alegações dos promotores foi a de que as próprias manifestações enviadas ao MP já comprovariam que o informativo foi” recebido por uma coletividade de pessoas como discurso odioso de cunho LGBTfóbico”. Ora, o critério para avaliar quando determinada manifestação deve ser considerada “discurso de ódio” tem sempre de ser objetivo, e não subjetivo: o seu conteúdo propriamente dito, não a suscetibilidade de uma pessoa ou de um grupo. Até porque, do contrário, já poderíamos dispensar praticamente todas as fases do processo penal: bastaria que alguém se dissesse ofendido para termos aí a prova cabal do cometimento do crime, sem necessitarmos de investigação ou julgamento.
E o que nos diz o conteúdo do texto enviado pelo colégio aos pais? Deixemos de lado, até por ser irrelevante no caso em questão, a veracidade ou não das afirmações feitas ali a respeito do histórico e do significado da iconografia criticada. O fato é que em nenhum momento o informativo traz ofensas ou estimula atos de discriminação contra a população LGBT – se o fizesse, aliás, a escola estaria desrespeitando o próprio ensinamento da Igreja Católica, com o qual a instituição diz ter “profunda sintonia”, já que o Catecismo da Igreja Católica afirma que “[os homossexuais”] devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta”. Não cabe, portanto, falar em “discurso de ódio” para descrever uma manifestação que em momento algum incita ódio contra pessoas ou grupos.
Como se não bastasse o descasamento entre o conteúdo da manifestação questionada e a avaliação que se faz dele, é preciso recordar, também, que a liberdade religiosa ganhou proteção especial naquele mesmo julgamento em que o Supremo criminalizou a homofobia. Diz o acórdão da decisão, redigido pelo relator, Celso de Mello: “A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.
Ressalte-se, aqui, que, embora o acórdão mencione explicitamente “atos de culto e respectiva liturgia”, ele não protege apenas o que é dito no púlpito ou por um ministro religioso, mas também as manifestações feitas em qualquer ambiente confessional, público ou privado. Isso, evidentemente, se aplica perfeitamente ao caso de uma escola católica que pretenda avisar pais de alunos sobre o uso de símbolos ligados a ideologias ou atitudes que a Igreja Católica condena, como o comunismo ou os atos homossexuais. No entanto, a proteção desejada pelo STF se viu ignorada neste caso, bem como em outro episódio protagonizado pelo MPMG, o de um colégio batista que publicou vídeo contrário à ideologia de gênero – a investigação ainda está em andamento.
Que a proteção à liberdade religiosa expressamente determinada pelo Supremo esteja sendo relativizada, neste caso, é uma agravante para um fenômeno mais amplo e mais nocivo: a absolutização da sensibilidade como critério para se determinar a existência de um “discurso de ódio” que mereça condenação e punição pelas mãos do Estado. Na prática, “discurso de ódio” já não é algo que objetivamente estimule a violência ou a discriminação contra uma pessoa ou um grupo, mas qualquer ideia da qual se discorde. Faz parte do jus sperneandi que alguém deseje reparação por ler ou ouvir algo que lhe faça se sentir ofendido, mas também faz parte da missão de instituições como o Ministério Público avaliar com sensatez cada queixa, sem aderir cegamente ao ethos censurador de parte da militância identitária.