Desde o período eleitoral a liberdade de expressão tem sido agredida como nunca se havia visto no Brasil desde a redemocratização, quase 40 anos atrás: houve censura prévia contra documentários, a imposição de direitos de resposta claramente inverídicos, a remoção costumeira de conteúdos verídicos que desagradavam candidatos e, mais recentemente, a intimidação contra quem critica determinados projetos de lei. Parecia difícil que pudéssemos ver algo ainda mais drástico, mas o Ministério Público Federal em São Paulo acaba de demonstrar que sempre é possível avançar ainda mais na repressão ao discurso livre. Em ação civil pública, os procuradores Yuri Corrêa da Luz e Ana Letícia Absy pretendem algo que apenas a ditadura militar havia realizado até agora: cassar concessões de telecomunicação.
O alvo é a Jovem Pan, a mesma emissora que, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, fora obrigada a veicular um direito de resposta com informações equivocadas sobre os processos judiciais contra o então candidato Lula. Os procuradores querem que a Justiça cancele três concessões de rádio pertencentes ao grupo de comunicação, alegando que a programação veiculada pela emissora, especialmente nos programas Os Pingos nos Is, 3 em 1, Morning Show e Linha de Frente, cometera ilegalidades como “prejudicar a confiança dos ouvintes nos processos democráticos realizados no país”, “deslegitimar os poderes constituídos, sobretudo membros do Poder Judiciário e do Poder Legislativo”, “incitar a desobediência à legislação e a decisões judiciais”, “incitar a rebeldia, a indisciplina e mesmo a intervenção das Forças Armadas brasileiras sobre as instituições e os poderes civis constituídos” e “incentivar a população à subversão da ordem política e social”, o que violaria o artigo 53 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62).
A retirada de concessões de veículos de comunicação por “crimes de opinião” é sinal de que o autoritarismo avança a passos largos no país
No entanto, o material que os procuradores reúnem ao longo das cerca de 200 páginas da ação civil pública nem de longe configura o tipo de incitação que o MPF tenta atribuir à emissora. Nos trechos citados na ação, os comentaristas dizem que a resposta da Justiça Eleitoral aos questionamentos sobre a segurança das urnas eletrônicas é insuficiente; que o Supremo Tribunal Federal tem postura ativista produz insegurança jurídica; que decisões do ministro Alexandre de Moraes violam a Constituição; que ministros das cortes superiores são hostis a Jair Bolsonaro; que as manifestações do período pós-eleitoral deveriam ser direcionadas a fazer pressão sobre o Congresso Nacional para que exercesse bem sua função de contrapeso ao Judiciário; que os desmandos do STF precisam ser contidos pelas demais instituições, de acordo com suas atribuições legais; que o Senado e seu presidente, Rodrigo Pacheco, se omitem quando não abrem processos de impeachment de ministros do STF. No limite, o que existe é também uma interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição, que trata das funções das Forças Armadas e à qual já nos referimos exaustivamente neste espaço, tanto sobre a interpretação em si quanto sobre o “erro de proibição” e o “erro de tipo” em que incorre quem assim pensa, e que dificulta sua responsabilização objetiva.
Impossível, portanto, caracterizar as manifestações dos comentaristas da Jovem Pan como incitação de qualquer tipo ao cometimento de crimes ou a rupturas democráticas. O que temos, sim, é a crítica às instituições e à maneira como vêm atuando, mas esta crítica está explicitamente protegida pela legislação. A Lei dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito (14.197/21) o deixou bem claro ao inserir no Código Penal o artigo 359-T: “Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais” (destaque nosso). Pouco importa, assim, se a crítica é mais ou menos veemente, se é sensata ou se não faz sentido algum, até mesmo se é ou não verdadeira: essa manifestação está legalmente protegida e jamais poderia servir de pretexto para qualquer tipo de repressão legal, muito menos para a retirada de uma concessão de radiodifusão.
Além do abismo entre os ilícitos imputados pelos procuradores e o conteúdo concreto das manifestações que se tenta criminalizar – a ponto de exigir que muitas vezes os autores da ação deem sua própria interpretação, atribuindo aos comentaristas determinadas intenções ou opiniões –, chama também a atenção o uso abundante, no texto da ação, de conceitos criados ad hoc durante o período eleitoral para justificar as decisões de censura. Destaca-se, aqui, o de “desordem informacional”, que esta Gazeta definiu, quando de sua criação pelo TSE, como “uma série de informações cuja veracidade é incontestável, mas que levam a conclusões indesejadas”, mas também são mencionadas “desinformação em larga escala”, “caos informativo”, “ataque às instituições” e, como não poderia deixar de ser, “fake news”, nem sempre na acepção exata do termo, referente a conteúdos factuais comprovadamente falsos.
O que temos, portanto, é uma enorme sequência de criminalização de opiniões que não são criminalizáveis, apoiada pelo uso de conceitos que também não constituem nenhum ilícito legalmente definido, usada para se solicitar uma medida completamente desproporcional que traz de volta os abusos do regime militar brasileiro e o de ditaduras de esquerda como a venezuelana e a nicaraguense. Cabe ao Judiciário responder ao ativismo militante dos procuradores do MPF com a defesa sólida das liberdades de expressão e de imprensa, pois a retirada de concessões de veículos de comunicação por “crimes de opinião” é sinal de que o autoritarismo avança a passos largos no país.