Em um dia repleto de mudanças no primeiro escalão do governo, Ernesto Araújo foi o primeiro a balançar e o último a cair, substituído pelo embaixador Carlos Alberto França no comando do Itamaraty. O agora ex-chanceler já estava na mira de parlamentares, especialmente os do Centrão, havia algum tempo, mas a gota d’água foi uma publicação, no Twitter, em que Araújo afirmou que a senadora Kátia Abreu (PP-TO) teria feito lobby a favor da tecnologia chinesa na implantação do 5G no Brasil. O tweet gerou reação em peso dos senadores, incluindo apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, e os parlamentares chegaram a ameaçar o bloqueio de pautas de interesse do governo e a aprovação de novos embaixadores se Araújo permanecesse no posto. Ele entregou o cargo na manhã de segunda-feira e teve a substituição confirmada à noite.
Araújo assumiu com a expectativa de uma guinada nas relações diplomáticas brasileiras. O petismo, apesar da fama internacional de Lula, entregou um Brasil fechado ao comércio internacional e amigo de ditaduras latino-americanas, africanas e do Oriente Médio, enquanto hostilizava democracias sólidas. Essa atuação levou um representante israelense a chamar o país, em 2014, de “anão diplomático” – um exagero injusto, ainda que de fato a condução das relações exteriores brasileiras fosse bastante deficiente. Araújo anunciava um redirecionamento mais de acordo com a tradição e os valores da diplomacia e do povo brasileiro, o que de imediato já lhe rendeu a hostilidade de vários grupos; o que levou à sua queda, entretanto, não foi tanto essa orientação, mas o fato de ele ter errado a mão em vários episódios.
A maior inserção comercial global é fundamental, mas a defesa de valores morais também é um legado que o novo chanceler precisa manter e incrementar à frente do Itamaraty
Houve avanços, indubitavelmente. A inserção internacional, objetivo conjunto do Itamaraty e da equipe econômica, progrediu com a assinatura do histórico tratado de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um esforço retomado ainda durante o governo Temer e concluído na atual gestão. O bloco sul-americano também assinou e negocia outros acordos – e o Brasil, individualmente, segue buscando parcerias com outras nações, para que finalmente deixe de ser um país fechado e protecionista.
Também no campo da pauta moral o Brasil se dispôs a ser uma liderança global ao assumir iniciativas em defesa da vida desde a concepção, da família e da liberdade religiosa, em consonância com as convicções dos brasileiros. Havia um temor inicial de que o Brasil abandonasse os fóruns multilaterais, o que, consequentemente, deixaria países menores e com os mesmos valores à mercê da engenharia social promovida por outras potências e por organismos do sistema das Nações Unidas. No entanto, a diplomacia brasileira acabou se movendo dentro do sistema multilateral, para influenciá-lo em vez de rejeitá-lo.
No entanto, parte dos acertos também evidenciou algumas das falhas da diplomacia brasileira desses últimos dois anos – cuja orientação, é preciso dizer, não pode ser atribuída apenas a Araújo, mas também ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e ao assessor Filipe Martins, que exercem no governo Bolsonaro papel similar ao de Marco Aurélio Garcia na era Lula e levam às relações exteriores as convicções do presidente da República. Um desses erros foi o alinhamento incondicional não tanto aos Estados Unidos como nação, mas com Donald Trump em particular, a ponto de os brasileiros terem deixado explícita sua preferência pelo republicano na campanha de reeleição em 2020, queimando antecipadamente pontes com os democratas, que acabaram vencedores. Outro equívoco esteve no tom às vezes agressivo na defesa de suas plataformas – mesmo daquelas nobres, como a defesa da vida e da família –, apostando no embate em vez do convencimento e reduzindo a lista de potenciais aliados do Brasil.
Além disso, Araújo não conseguiu oferecer uma resposta satisfatória em outros campos, como a crise ambiental de 2019, por exemplo, com as queimadas de meio de ano na Amazônia, que colocou o Brasil nas cordas. A política ambiental brasileira, aliás, está sendo usada para frear a ratificação do acordo comercial com a União Europeia, embora governantes como o francês Emmanuel Macron a estejam usando como pretexto, já que seu real objetivo é agradar o altamente subsidiado agronegócio francês, que perderia com o livre comércio.
Mas foi a relação com a China que apresentou os maiores desafios ao país. Como lidar com um parceiro comercial importantíssimo, mas que ao mesmo tempo é uma ditadura comunista violadora contumaz de direitos humanos, que não hesita em esmagar os pedidos por democracia em Hong Kong e promover a aniquilação étnica e cultural dos uigures, e que se recusa a assumir sua responsabilidade pelos erros cometidos no início da pandemia de Covid-19? Este não é um dilema apenas brasileiro – várias potências ocidentais se veem diante da mesma questão, como se observa pela escalada de hostilidades entre a China e os Estados Unidos, a União Europeia e a Austrália. Mas a opção de Araújo foi a do puro confronto, inclusive com o uso das mídias sociais em vez dos habituais canais diplomáticos, mais uma vez tendo Eduardo Bolsonaro como parceiro nos ataques, que resvalaram até mesmo no fornecimento de insumos chineses para a fabricação de vacinas contra a Covid-19.
Ao Centrão, obviamente, interessam apenas resultados, não convicções. Mas o novo chanceler não pode se limitar ao pragmatismo nas relações exteriores. A maior inserção comercial global é fundamental, mas a defesa de valores morais também é um legado que o novo chanceler precisa manter e incrementar à frente do Itamaraty. Construir pontes globalmente ao mesmo tempo em que se mantém uma postura firme naqueles temas que são caros ao governo e à população brasileira é tarefa necessária, que exige equilíbrio e sabedoria para escolher bem que tom adotar diante de cada situação. Que Carlos Alberto França tenha essas qualidades e mantenha a tradição estabelecida pelo Barão do Rio Branco, por Rui Barbosa e por Oswaldo Aranha.