Autoridades e entidades da sociedade civil organizada empenhadas no combate à corrupção estão em alerta graças a um projeto que tramita na Câmara dos Deputados e pretende alterar a Lei de Improbidade Administrativa. E há muitos motivos para preocupação, não apenas pelo que o projeto propõe – pois a versão mais recente que se tornou pública prevê um afrouxamento das regras atuais –, mas também pela tramitação apressada com que o presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), quer imprimir ao texto, com apoio de políticos dos mais diversos matizes.
À pressa soma-se, ainda, um quase segredo. Havia uma comissão especial para analisar o Projeto de Lei 10.887/18, instalada no fim de 2019, mas ela ainda não havia concluído os trabalhos, interrompidos pela pandemia; em acordo com líderes partidários, Lira resolveu atropelar a comissão e levar o texto diretamente para votação em plenário. No entanto, ninguém sabe o que exatamente vai ser votado, pois o relator, Carlos Zarattini (PT-SP), ainda não divulgou a última versão de seu substitutivo – uma falta de transparência gritante que, associada à pressão para que a votação ocorra logo, deixa a porta aberta para que todo tipo de barbaridade acabe aprovado sem muita reflexão.
O PL 10.887 não vem em socorro de bons gestores que, às vezes, se equivocam agindo de boa fé; vem para facilitar a vida dos que pretendem se aproveitar do cargo público em benefício próprio
Há quem defenda, com muita boa fé, que a Lei de Improbidade Administrativa, nos moldes atuais, contém alguns elementos de subjetividade que colocariam bons gestores em uma posição frágil, sujeitos à responsabilização e à perda do mandato. Um exemplo citado pelos críticos é o caput do artigo 11 da lei, que define como ato de improbidade administrativa “qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. Neste sentido, aperfeiçoar a lei para delimitar melhor até onde um gestor pode ir, eliminando subjetivismos, é medida bem-vinda. No entanto, a julgar pelas versões anteriores do PL 10.887, a intenção de Zarattini vai muito além disso.
O mais recente substitutivo cujo teor é conhecido traz mudanças que não têm relação alguma com o desengessamento da vida dos gestores. Elas tornarão muito mais difícil responsabilizar e punir um ocupante de cargo público por improbidade administrativa. Entre as mudanças que Zarattini pretendia fazer na lei está a necessidade de se comprovar a intenção explícita do gestor – ou seja, o ato ilegal, se cometido sem a intenção de se beneficiar, já não ensejaria responsabilização, nem mesmo em casos de negligência ou de erro grosseiro. Além disso, Zarattini removeu todo o artigo 11 já citado, eliminando não apenas o caput que daria margem à subjetividade na análise das ações do gestor, mas todos os dez incisos que descrevem objetivamente atos que caracterizariam improbidade. Restariam, portanto, apenas as condutas que gerem enriquecimento ilícito ou prejuízo aos cofres públicos.
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Igualmente preocupante é a tentativa de reduzir o prazo de prescrição, que hoje ocorre “até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança” e passaria a acontecer “em cinco anos contados a partir da ocorrência do fato”, trazendo uma dificuldade adicional para que os agentes públicos envolvidos em atos de improbidade sejam punidos. O encurtamento dos prazos de prescrição é receita certa para a impunidade, pois não estamos, aqui, tratando de crimes com prazos longos, nos quais o Estado se demora injustificadamente em sua pretensão punitiva, mas de prazos curtos que fazem a festa daqueles que souberem manejar habilmente o cipoal de recursos infinitos previstos pela legislação brasileira.
O “apagão das canetas” é real, isso é inegável. Qualquer um que tenha ocupado cargo executivo já experimentou o medo de tomar alguma decisão, ainda que movido pela mais profunda boa fé, e acabar acusado de improbidade administrativa por ter cometido algum equívoco, especialmente em situações que exigem respostas rápidas. Nestes casos, a alternativa acaba sendo a inércia: a melhor maneira de não ser responsabilizado por algum ato é não realizar ato algum – o que, evidentemente, não é o que a população espera dos governantes e suas equipes. Mas o PL 10.887 não vem em socorro destes bons gestores; vem para facilitar a vida dos que pretendem se aproveitar do cargo público em benefício próprio. Não surpreende que o texto tenha unido deputados que vão do petismo ao bolsonarismo, irmanados pelas críticas à Operação Lava Jato e interessados em aprovar as mudanças sem o tão necessário debate parlamentar.