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Editorial

Na Venezuela, o poder legítimo segue resistindo

Juan Guaidó, presidente interino da Venezuela. (Foto: EFE/Rayner Peña)

A legítima Assembleia Nacional venezuelana – aquela eleita em 2015, não o Legislativo usurpador escolhido na farsa eleitoral de 2020 – está discutindo uma reforma que prorrogue a sua continuidade como o verdadeiro Poder Legislativo do país, e a consequente manutenção de Juan Guaidó como presidente interino da nação. A reforma, aprovada em primeira votação, mas que precisa passar por um segundo escrutínio no próximo dia 30, é a única solução possível desde que a ditadura de Nicolás Maduro passou a manipular os processos eleitorais que supostamente lhe deram um novo mandato presidencial em 2018 e renovaram o parlamento em 2020, sem o reconhecimento da maioria das democracias ocidentais.

Guaidó assumiu interinamente a presidência da Venezuela em janeiro de 2019, em obediência à Constituição venezuelana, que, na ausência de um chefe legítimo do Poder Executivo, atribui essa função ao chefe da Assembleia Nacional, posto que Guaidó exercia. Em 2018, Maduro vencera uma eleição nada livre e com inúmeras suspeitas de fraude, mas insistira em tomar posse no início de janeiro de 2019, contra os apelos de boa parte da comunidade internacional. Diante desse desafio às leis venezuelanas, Guaidó e a Assembleia Nacional – único poder legítimo do país, já que o Judiciário também havia perdido sua independência, estando subserviente ao ditador – responderam com um movimento inédito até então, deixando claro para o mundo todo que o “novo mandato” de Maduro era ilegítimo. No entanto, Guaidó jamais conseguiu cumprir a principal atribuição de um presidente interino, a convocação de novas eleições, pois Maduro, tendo a seu lado todo o aparato de repressão, o oficial e o paramilitar, jamais permitiu que isso ocorresse.

A Venezuela tem um ditador ilegítimo “eleito” em 2018, um Legislativo ilegítimo “eleito” em 2020, e uma Assembleia Nacional legítima, eleita em 2015, que precisa seguir renovando seu mandato para que o país continue a ter um presidente

O impasse cresceu em 2020, com o término do mandato parlamentar da Assembleia Nacional eleita em 2015. A renovação do parlamento, no entanto, se deu em condições ainda mais escandalosas que a “reeleição” de Maduro em 2018, com interferência ativa da Justiça Eleitoral para que apenas o chavismo e atores políticos coniventes com a ditadura tivessem representação na Assembleia Nacional. Novamente, o pleito foi rechaçado pelas nações democráticas, que se recusaram a reconhecer o resultado. Os “deputados” usurpadores até tomaram “posse”, mas o Legislativo genuíno continuou a ser aquele eleito em 2015, que prorrogou seu mandato para evitar que não houvesse mais governo algum no país. Esta é a situação institucional em que se encontra hoje a Venezuela: há um ditador ilegítimo “eleito” em 2018, um Legislativo ilegítimo “eleito” em 2020, e uma Assembleia Nacional legítima, eleita em 2015, que precisa seguir renovando seu mandato para que o país continue a ter um presidente, até que seja possível realizar novas eleições gerais limpas.

Guaidó continua enfrentando um desafio duplo. Embora seja o presidente de direito, continua incapaz de governar a Venezuela porque Maduro detém o comando de fato, por manter a lealdade do poder armado; todas as recentes tentativas de trazer para seu lado figuras importantes das Forças Armadas, ou de promover manifestações populares capazes de mudar os rumos do país, não tiveram sucesso. Internacionalmente, o apoio às formas democráticas se enfraqueceu na esfera regional: o Grupo de Lima perdeu Argentina e Peru, e o número de seus membros governados pela esquerda está aumentando, o que deve aumentar a dissensão dentro do grupo quanto às medidas que precisam ser tomadas contra Maduro. Os Estados Unidos, sob Joe Biden, continuam reconhecendo Guaidó como presidente, mas a Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia, não reconheceu a continuação do mandato da Assembleia Nacional, por mais que também condenasse o pleito fraudado de 2020 – na prática, isso significa que a UE não mais considera Guaidó o chefe interino do Poder Executivo venezuelano.

Essas baixas no reconhecimento enfraquecem a reivindicação de Guaidó e facilitam a vida de Maduro, que continua usando as rodadas de diálogo para ganhar tempo e se consolidar no poder. A mais recente delas, mediada pela Noruega e realizada no México em setembro e outubro de 2021, foi abandonada pela ditadura bolivariana, que usou como pretexto a extradição para os Estados Unidos de Alex Saab, empresário colombiano e aliado próximo de Maduro que estava detido em Cabo Verde. A má-fé dos chavistas é tanta que foi reconhecida até pelo papa Francisco, em carta enviada por ele a Maduro no início de 2019, em resposta a um pedido de mediação, e que acabou vazada para a imprensa.

As grandes vítimas do apego de Maduro ao poder, com seu autoritarismo e truculência que fazem do “socialismo do século 21” nada mais que uma cópia dos socialismos do século 20, são os venezuelanos comuns. A pobreza, a fome, o caos na segurança, nada disso pode ser atribuído a Guaidó e seu esforço diplomático contra Maduro, pois o ditador faz o que quer sem enfrentar resistência alguma, apesar do apoio popular de que goza o presidente interino. Pelas projeções do FMI, no fim deste ano o PIB per capita da Venezuela será menor que o do Haiti; apenas a aplicação do socialismo explica o fato de o país detentor das maiores reservas petrolíferas do mundo ser também a nação mais pobre de seu continente.

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