Às vezes a melhor das intenções cria obstáculos que podem inviabilizar todo um setor econômico. Na quarta-feira, dia 4, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu proibir que eventos culturais com potencial de lucratividade ou de atração de investimentos privados possam receber incentivos fiscais por meio da Lei Rouanet. Os ministros do TCU tomaram a decisão no processo em que foi discutida a regularidade do uso da Lei Rouanet no Rock in Rio e em outros eventos culturais que cobram ingresso, recebem patrocínio e obtêm receitas de outras fontes.
Na visão do ministro relator, Augusto Sherman, não seria possível “vislumbrar o interesse público a justificar a renúncia de R$ 2 milhões de receita do Imposto de Renda em benefício da realização de um projeto com altíssimo potencial lucrativo, como o Rock in Rio”. O posicionamento do ministro e de seus colegas é compreensível e aparentemente defensável. Afinal, o governo federal está encrencado numa profunda crise fiscal e, portanto, não faria sentido aceitar que projetos lucrativos ou que atraiam a iniciativa privada pudessem receber incentivos via Lei Rouanet, já que estariam viabilizados de uma maneira ou outra. Contudo, a decisão repousa numa incompreensão da complexa dinâmica que rege as atividades do setor, não levando em conta a extrema dificuldade de viabilização econômica dos projetos culturais e artísticos.
Sem recursos decorrentes de mecanismos de incentivo, muitos projetos culturais e artísticos estariam hoje praticamente inviabilizados
Eventos dessa natureza são empreendimentos que operam em ambientes de elevada incerteza. Quando do planejamento dos espetáculos, é bastante difícil controlar as diversas variáveis que influenciam no sucesso do empreendimento, tornando complicado prever de antemão quais fatores são decisivos para conduzir à rentabilidade do projeto.
Até mesmo aqueles megaeventos que intuitivamente diríamos ter grande potencial de lucro acabam, muitas vezes, dando prejuízo, numa evidência de que tanto empreendimentos de pequeno porte quanto os de maior envergadura têm dificuldades de viabilização econômica. O Rock in Rio é uma exceção de sucesso no mercado de shows. Em anos passados, o Lollapalooza e o SWU registraram dificuldades financeiras.
Por causa desse intrincado contexto, não é razoável limitar o alcance da Lei Rouanet. Sem recursos decorrentes de mecanismos de incentivo, muitos projetos culturais e artísticos estariam hoje praticamente inviabilizados.
A decisão do TCU não é perigosa apenas pelos aspectos econômicos que envolvem a viabilidade de projetos culturais e artísticos. Há o aspecto político. Ao estabelecer que projetos com “potencial lucrativo” ou que “possam atrair investimento privado” estão proibidos de usar os incentivos da Lei Rouanet, o TCU estabeleceu critérios que, além de não constarem na letra da lei, abrem uma desnecessária margem para a discricionariedade política. Agentes públicos podem, se assim o desejarem, se valer maliciosamente desses critérios para desqualificar e impedir que legítimas manifestações culturais e artísticas sejam viabilizadas, com base no entendimento de que elas se enquadram nos vagos requisitos definidos pelo TCU. Num país como o Brasil – governado pelo PT, uma legenda acostumada a aparelhar o Estado –, há o enorme risco da ideologização da arte e da cultura, que podem ser orientadas para atender interesses partidários.
Felizmente ainda cabe recurso da decisão dos ministros do TCU. Oxalá os ministros a reconsiderem, a fim de evitar a desagregação do setor e a possibilidade de a decisão ser instrumentalizada para objetivos diversos daquele para o qual a Lei Rouanet foi criada.
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