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Editorial

Negociar não é dobrar-se

 | Marcos Corrêa/PR
(Foto: Marcos Corrêa/PR)

Desde que Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional sua proposta de reforma da previdência, vem crescendo em diversos setores da política e da sociedade brasileira, mesmo entre aqueles que apoiaram seu nome nas eleições de outubro, a percepção de que o governo carece de uma estratégia de coordenação e negociação com o Legislativo. Por outro lado, apoiadores mais entusiasmados de Bolsonaro e cidadãos descontentes com as práticas escandalosas de corrupção reveladas nos últimos anos têm insistido na ideia de que qualquer articulação com o Congresso não se poderia dar senão como negociata de interesses escusos e antirrepublicanos. 

Talvez nem sempre se perceba a relevância da negociação, mas ela é tão mais valiosa e necessária nas democracias quanto mais desafiador o tema que está sobre a mesa. É preciso ter clareza: a reforma da previdência, embora urgente para qualquer conhecedor razoável do tema, é um dos temas mais complexos no debate público de qualquer democracia e, também, um dos que mais despertam paixões políticas e contrariam interesses setoriais e corporativos. Mesmo cidadãos bem informados podem ter dúvidas sinceras – senão sobre a necessidade geral da reforma, então sobre pontos específicos do projeto. Entre deputados e senadores, a realidade não é diferente: a sensação no Congresso é de que nunca houve momento mais propício para se aprovar uma reforma, mas há dúvidas entre os representantes populares. 

Um parlamentar deve votar de acordo com sua consciência e o bem comum

Imagine-se o leitor um deputado de boa-fé que tenha dúvidas sobre a reforma proposta no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Será razoável antecipar o início do pagamento do BPC para os 60 anos de idade – hoje ele é pago para idosos com mais de 65 anos em situação de extrema pobreza –, mas diminuir seu valor do atual salário mínimo para os iniciais R$ 400,00, que aumentariam progressivamente conforme a idade do beneficiado? Se o ponto referente ao BPC for retirado da reforma, quanto deixará de ser economizado anualmente? Uma eventual perda nessa economia não poderia ser compensada por uma reforma mais agressiva em algum outro ponto? 

Um parlamentar que tenha essas dúvidas precisa ter, primeiro, informações claras sobre as consequências de seu voto. Para quem ele deveria endereçar essas dúvidas? Deveria tentar agendar diretamente com o ministro da Economia, com alguém da equipe econômica ou procuraria o líder do governo na Câmara, no Senado ou no Congresso? Nada disso está claro até agora – nem esses agentes todos, que em diferentes medidas representam o mesmo governo, estão falando a mesma língua. Se estiverem, fato é que não é essa a percepção dos parlamentares no dia a dia do Congresso. 

Mesmo depois de conseguir as informações, o parlamentar teria de decidir o que fazer com ela. Imagine que ele esteja convencido sobre a necessidade de aprovação da proposta atual do governo sobre o BPC, mas sua base eleitoral não concorde com a mudança. Um parlamentar deve votar de acordo com sua consciência e o bem comum, mas a sensibilidade aos eleitores é também inescapável e saudável nas democracias. Em uma situação dessas, o parlamentar vai procurar os colegas. Seu partido vai fechar questão? E os demais partidos? Os parlamentares do partido do presidente da República eventualmente comprarão esse desgaste com as bases eleitorais para apoiar esse ponto da reforma? O governo estaria disposto a modificar esse ponto se outra questão polêmica da reforma – digamos a aposentadoria rural – fosse apoiada? Da resposta a todas essas perguntas dependerá o voto do parlamentar. 

Tudo isso é negociação legítima e necessária em uma democracia, em que os poderes são divididos e, por isso mesmo, devem dialogar e manter a harmonia entre si. Mas, para que essa negociação possa ser proveitosa, é preciso coordenação por parte do governo: uma estratégia clara, com líderes bem definidos e munidos de todas as informações técnicas e conhecimento de todos os compromissos políticos que o governo estaria disposto a assumir em prol da aprovação deste ou daquele ponto. Do contrário, parece claro que qualquer negociação estará fadada ao fracasso: se um deputado recebe uma sinalização do governo, e outro recebe a sinalização contrária, a informação perde toda a credibilidade e nenhum dos parlamentares estará seguro para dar seu voto na proposta do governo. 

Por tudo isso, diálogo, negociação e articulação política são corriqueiros e necessários em uma democracia. Quanto mais complexo e desafiador um tema, mais se exigirá dos governantes uma capacidade de coordenação inteligente desse processo, uma liderança inspiradora que não fomente a discórdia, mas busque terrenos comuns, e uma comunicação arrojada que motive o alinhamento dos atores políticos na direção das mudanças que se vislumbram como fundamentais. Se este não for o caminho, todas as sociedades estariam presas a uma alternativa macabra: ou a total inação, ou a imposição unilateral da vontade de um grupo.

Quando há, portanto, uma comunicação engajada, transparente e bem feita, diminui substancialmente a chance de preponderarem os interesses escusos. Mas suponhamos apenas por um momento, como pensa parte substancial da população brasileira, que a maioria dos parlamentares atue motivada por interesses sinistros e inconfessáveis. Nesse caso, a coordenação política deveria ser eliminada? Muito pelo contrário, porque é na clareza e na transparência que se permitem identificar as condutas torpes. Na balbúrdia da falta de transparência e de coordenação é que se torna mais difícil e custoso distinguir as condutas republicanas daquelas indecorosas, imorais e mesmo ilegais. Isso é algo que toda a sociedade precisa reconhecer e que melhorará consideravelmente o processo político brasileiro. 

Ainda que nem todas as partes tenham essa clareza, o fato é que há um novo Congresso eleito, e com uma boa taxa de renovação, e um novo Executivo. Há espaço para um aprendizado paulatino na interação entre os agentes políticos e para que a sociedade aprenda também e se engaje de forma mais madura nesse processo. Aprender a negociar não é dobrar-se, mas sim crescer na virtude democrática. Mesmo que seja um aprendizado lento, com tropeços e ruídos, é preciso que os passos sejam dados na direção certa: a do diálogo. Essa é uma caminhada que, no fundo, todos os atores políticos, incluindo os cidadãos, devem fazer juntos. 

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