A liberdade de expressão é um dos valores mais caros a todos os que verdadeiramente compreendem a grande importância da democracia. Por mais que ela não seja, como querem alguns, absoluta, merece a mais extensa proteção possível, tanto em razão de seu papel no fortalecimento da livre atuação política dos cidadãos quanto no seu papel de meio de florescimento dos potenciais humanos. Mesmo assim, ela continua a ser ameaçada das mais diversas formas: desde as mais explícitas e que não fazem questão de esconder seu caráter de censura, seja a imposta pela força, seja pela caneta do Judiciário (como, aliás, continua ocorrendo no Brasil de hoje), até os mecanismos tão sutis que acabam incorporados na mente das pessoas, transformando-se em uma autocensura digna de distopias orwellianas.
E, entre esses dois polos, há as ameaças que se escondem atrás de terminologias edificantes; é o caso dos quase gêmeos projetos de lei ditos “de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” tramitando na Câmara e no Senado. Ora, quem não quer “liberdade, responsabilidade e transparência na internet”? Mas, por trás do nome e de trechos necessários, como os que preveem o combate a perfis falsos, robôs, redes de calúnia e difamação, há também uma tentativa de cercear a liberdade de expressão do cidadão: uma mordaça neste tempo de máscaras.
Tanto o PL 1.429/2020, proposto pelos deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP), quanto o PL 2.630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), entre incontáveis problemas, pecam por um “vício de origem”: a ideia de que o Estado teria por função controlar aquilo que chama “desinformação”. Como sói acontecer no processo legislativo brasileiro, as peças elencam objetivos aparentemente nobres, como no artigo 3.º do PL 1.429: “o fortalecimento do processo democrático por meio do combate à desinformação e do fomento à pluralidade de informações na internet do Brasil”.
"Desinformação", nos projetos apresentados, é toda afirmação que, em suma, ofenda os brios de alguém
O que seria, porém, a desinformação? O projeto a define no artigo seguinte: “conteúdo falso ou enganoso que foi propositadamente colocado fora de contexto, manipulado ou completamente forjado com o interesse de enganar público e que: a) Seja disseminado para obter ganhos econômicos; ou b) Possa causar danos públicos, como fraudes eleitorais, o risco à estabilidade democrática, ao funcionamento de serviços públicos, à integridade física e moral de pessoas e grupos identificáveis por sua raça, gênero, orientação sexual ou visão ideológica ou consequências negativas à saúde individual ou coletiva”. Palavreado semelhante é verificado no PL 2.630: “conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia”.
O leitor atento deve ter já percebido que cabe tudo na definição. Desinformação, nos projetos apresentados, é toda afirmação que, em suma, ofenda os brios de alguém. O problema fundamental reside em quem tem autoridade para definir o que é uma mentira ou não. Na sua essência, os projetos preveem uma estrutura de governança para regular a informação que circula nos “provedores de aplicações de internet”, isto é, redes sociais como Twitter, WhatsApp, Facebook e Telegram. Os responsáveis por esses serviços passam a ter “o dever de desenvolver procedimentos de acompanhamento para melhorar as proteções do usuário contra comportamentos ilícitos”. Entre os procedimentos elencados, os provedores precisam encaminhar conteúdos potencialmente desinformativos a “verificadores de fatos independentes”, que teriam por função avaliar a veracidade da informação, donde se seguiriam potenciais consequências como bloqueios de contas disseminadoras de desinformação, entre outras medidas.
Nessa nova governança da informação, portanto, o Estado delega para entidades privadas formadas por jornalistas o poder de classificar a veracidade ou não de determinada informação, produzida por políticos, empresas de comunicação ou qualquer um que seja capaz de escrever um texto. Em última instância, os PLs transferem para o Estado a função de ajuizar aquilo que é verdade ou não, em relação a quaisquer fatos ou informações imagináveis, e o Estado atuaria pela via de agências privadas de regulação. A ideia é complicada por princípio e difícil de imaginar em termos de operacionalidade numa democracia, mantendo o respeito às liberdades fundamentais e ao direito de livre expressão. A questão se torna ainda mais gravosa quando se considera a privacidade dos usuários da rede, que estaria sujeita, segundo o artigo 9.º do PL 2.630, a “boas práticas para a proteção da sociedade contra a desinformação”, entre as quais “o uso de verificações provenientes dos verificadores de fatos independentes com ênfase nos fatos” e a rotulação de conteúdo desinformativo como tal. Essas entidades ganhariam, portanto, direito de saber que informações estão sendo veiculadas por qual pessoa entre seus contatos privados, numa flagrante ingerência sobre a privacidade de milhões de pessoas.
Que há abusos no exercício da liberdade de expressão é algo bastante evidente. Mas a constatação desse abuso deve ocorrer no âmbito do Judiciário, não cabendo essa avaliação a outra instância. E, mesmo assim, ao Judiciário não cabe analisar a veracidade ou não de críticas, ideias, pensamentos, mas apenas a veracidade de fatos, efetivamente verificáveis, pela simples razão de que o Judiciário não é a instância que dá a palavra final sobre ciência, história ou filosofia etc.
Ora, se nem ao Judiciário se concede a possibilidade de analisar a veracidade de afirmações não factuais, com ainda mais razão não se pode atribuir tal incumbência a quem quer que seja, muito menos a entidades privadas, pretensamente arvoradas em instâncias checadoras, supostamente mais sérias do que a de outras empresas que dedicam suas atividades à difusão da informação. Igualmente problemático é atribuir-lhes autoridade na própria aferição de fatos, porque isso suporia conceder-lhes o julgamento do que é factual ou opinativo ou avaliativo, algo que, por óbvio, só o Judiciário poderia fazer.
Especialmente no caso brasileiro, já ficou comprovada a atuação seletiva e parcial das autodenominadas “agências de checagem”, e um caso recente bem o ilustra: em 11 de maio, um site jornalístico de esquerda afirmou que apoiadores de Jair Bolsonaro haviam feito uma saudação nazista diante do presidente no Palácio da Alvorada, o que foi imediatamente replicado por outros sites de considerável audiência e mesma orientação ideológica. Para tanto, usaram foto anteriormente publicada no site do canal CNN Brasil, que havia identificado corretamente o gesto como uma oração feita por evangélicos (e, para não deixar dúvidas, vídeos do episódio deixavam claro que se tratava da chamada “imposição das mãos”). Uma das mais badaladas “agências de checagem” levou inacreditáveis 24 horas para denunciar a mentira; outra delas simplesmente ignorou a fraude. Tampouco o Facebook restringiu o alcance das publicações que compartilharam as matérias dos três sites de esquerda. Ora, se os autodenominados guardiões da lisura na internet falham de forma tão grosseira quando se trata de uma alegação factual facilmente desmentível, como entregar-lhes tamanho poder? Não estaria longe o dia em que veríamos o bloqueio de publicações, por exemplo, com informações científicas que embasem a defesa da vida desde a concepção, ou a impostura da ideologia de gênero.
Já ficou comprovada a atuação seletiva e parcial das autodenominadas “agências de checagem”
Não custa lembrar que a Constituição, no seu artigo 220, caput e §1.º, prevê que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Também afirma que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. No fim das contas, é isso que está em jogo. O que os projetos instituem, a despeito dos trechos que atacam problemas reais, é um dispositivo de censura, de governança da informação e das opiniões numa sociedade livre, sob a aparência de legalidade democrática.
É por isso que dizemos haver um “vício de origem” nas propostas, que dando ensejo a abusos e violações de liberdades. Em última instância, a proposta concentra no Estado uma aberração equivalente a uma espécie de “monopólio legítimo da veracidade”. E não seria inverossímil imaginar que qualquer dos PLs, transformado em lei, logo se desdobrasse na criação de um orwelliano Ministério da Verdade para garantir a saúde das nossas instituições.
Em tempos normais, seria esperado que propostas assim fossem alvo de uma reação fortíssima da sociedade civil organizada, de entidades de classe, enfim, de todos os democratas, denunciando com veemência as consequências antidemocráticas dos mecanismos previstos no texto. Porém, não é o que tem ocorrido, a ponto de, na semana passada, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ter anunciado com toda a tranquilidade que pautaria o PL 2.630 para votação no próximo dia 2.
Esta Gazeta aceita como legítima a ideia de que o ambiente das redes sociais se encontra sujeito, de uma maneira ou de outra, às regulações estatais. Ubi societas ibi jus, como reza o princípio latino. Onde houver a sociedade, aí também estará o Direito. Não existe liberdade absoluta em nenhuma esfera da vida humana, além da própria consciência do indivíduo. Regras impositivas para reger a convivência ordenada são perfeitamente legítimas, desde que dentro dos parâmetros de legalidade democrática – daí nossa observação a respeito de alguns trechos de ambos os PLs que se referem a problemas reais, aos quais o nosso ordenamento jurídico precisa, sim, dar resposta.
O problema das redes sociais é delicado e demanda um debate extenso, envolvendo toda a sociedade. O Poder Legislativo não pode se dar ao luxo de somar mais instabilidade à ordem política e institucional com decisões equivocadas. Já nos basta o ativismo atrapalhado do Judiciário, como no caso do inquérito das fake news em curso no Supremo Tribunal Federal, uma anomalia jurídica sem objeto próprio, não provocada pelo MPF ou por autoridade judicial, correndo em segredo de Justiça, em que o STF aparece como juiz, acusador e vítima. É preciso recobrar o ânimo e debater o tema com a vagarosidade e atenção que se exige em qualquer questão delicada. Até aqui, as propostas apresentadas são só mais fagulhas no incêndio que tomou conta da sociedade brasileira nos últimos anos.
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