A principal data comemorativa francesa, o 14 de julho – aniversário da Queda da Bastilha, marco da Revolução Francesa –, se tornou um dia de luto para o país. Na noite de quinta-feira, um caminhão atropelou centenas de pessoas que esperavam para assistir a uma queima de fogos na cidade litorânea de Nice. O motorista, depois de percorrer dois quilômetros, ainda abriu fogo contra a multidão, de acordo com relatos de testemunhas, antes de ser morto pela polícia. Mohamed Bouhlel, franco-tunisiano de 31 anos, já havia tido problemas com a polícia e a Justiça, mas as autoridades não identificaram nenhuma conexão com grupos extremistas. Até o momento, nenhum grupo havia reivindicado o ataque, mas o presidente François Hollande afirmou, logo após o ataque, que “toda a França está sob ameaça do Estado Islâmico”. A inteligência francesa já havia alertado para o risco de ataques de extremistas muçulmanos com o uso de veículos como armas.

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Os documentos de Bouhlel, segundo imagens divulgadas pela imprensa, mostram que ele conseguiu autorização para residir na França ainda na década passada, bem antes das crises de refugiados que dispararam controvérsias por toda a Europa. Se lembrarmos que também os atiradores que invadiram a sede do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, tinham nascido na França; e que Abdelhamid Abaaoud (considerado o cérebro por trás dos ataques de novembro do ano passado, também em Paris) era belga de nascimento, chega-se à conclusão de que a chave para compreender a onda de terrorismo islâmico que assola a Europa não é tanto a questão migratória envolvendo os refugiados – embora não se possa ser ingênuo a ponto de ignorar a possibilidade de terroristas se aproveitarem da crise para chegar à Europa –, e sim a radicalização que se opera já dentro do território europeu.

O multiculturalismo cristaliza as culturas, inclusive no que têm de pior, sob o argumento de que merecem respeito independentemente do seu conteúdo

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Essa radicalização – que inclusive contribuiu para que muitos europeus de nascimento deixassem seus países para lutar pelo EI no Oriente Médio – floresceu em um ambiente dominado pelo multiculturalismo, que nivela todas as manifestações culturais e comportamentos, considerando-as todas igualmente dignas de respeito e condenando como discriminatórias quaisquer apreciações que defendam a superioridade de certos valores sobre outros. Os multiculturalistas passaram décadas calando-se a respeito de práticas bárbaras cometidas em regiões de maioria islâmica, como a mutilação genital de mulheres e as severas punições a homossexuais; jamais criticaram a falta de liberdade religiosa nas nações muçulmanas; e chegaram ao ponto de ignorar – ou, em alguns casos, até incentivar – a pressão pela adoção da lei islâmica em áreas de maioria muçulmana dentro das nações ocidentais, o que na prática criaria enclaves onde o regramento jurídico nacional não se aplicaria, sendo substituído pela sharia.

O multiculturalismo, ao suprimir qualquer discussão sadia sobre os valores das minorias em contraposição aos valores das maiorias, bloqueou o surgimento de uma síntese produtiva entre os mundos islâmico e ocidental; em vez disso, cristalizou as culturas, inclusive no que têm de pior, sob o argumento de que merecem respeito e aceitação independentemente do seu conteúdo. Permitiu, assim, que o extremismo fincasse raízes na Europa e, de dentro dela, negasse os valores que construíram a civilização ocidental. Em um círculo vicioso, o extremismo alimenta e é alimentado por um enclausuramento ocidental que nega, especialmente aos jovens muçulmanos, as oportunidades de convivência – especialmente profissional – que favoreceriam uma convivência mais harmoniosa.

Não se trata, obviamente, de propor como resposta ao multiculturalismo a supressão completa da identidade cultural alheia, como se um grupo minoritário não tivesse direito algum às manifestações que lhe são características. O que está em jogo aqui é a necessidade de reforçar, com firmeza e respeito, algumas verdades: a defesa da tolerância e das liberdades individuais e democráticas é, sim, superior a qualquer ideário que negue esses elementos básicos. Lutar por isso é ajudar a criar o clima que vai abafar o extremismo e favorecer um convívio pacífico entre culturas.