O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano, responsável pela organização das eleições no país, anunciou na segunda-feira que três “pedidos de ativação de referendo revogatório” foram aceitos pela entidade, o que, em tese, poderia levar ao fim da ditadura de Nicolás Maduro. “Em tese” porque a notícia da aprovação dos três pedidos precisa ser lida cum grano salis: há muitos aspectos e riscos envolvidos no processo, e que o ditador pode aproveitar para reforçar sua pretensão ilegítima ao posto de líder máximo da Venezuela.
A Constituição venezuelana prevê que, passada a primeira metade de qualquer mandato eletivo, incluindo o do presidente, a população pode aprovar um referendo que casse este mandato. Para levar o pedido de ativação de referendo ao CNE, é necessário ter o apoio de 1% do eleitorado; depois, é preciso que 20% dos eleitores endossem a convocação do referendo; por fim, na votação propriamente dita, mais de 25% dos eleitores devem comparecer as urnas, e os votos pela cassação devem superar os que haviam eleito o político. Agora, o CNE montará um cronograma para que os grupos interessados no referendo – o Movimento Venezuelano para o Revogatório (Mover), o Todos Unidos pelo Referendo Revogatório, o Comitê Executivo Nacional da Confedejunta e o Comitê de Democracia Nacional e Internacional – busquem esses 20% de eleitores, cerca de 4 milhões de venezuelanos.
Bastaria a Maduro permitir que o referendo ocorresse e manipular os resultados da votação para que ele tivesse em mãos um trunfo para usar contra os que desejam a volta da democracia à Venezuela
No entanto, há um precedente bastante preocupante, o de 2016. Naquele ano, a oposição disparou o mesmo processo, e o CNE passou a dificultar a ativação do referendo: determinou um período de apenas três dias para a busca pelos 4 milhões de assinaturas; determinou que o objetivo de 20% precisava ser cumprido em todos os estados, e não apenas nacionalmente (o que não está na Constituição); e ofereceu menos de 30% das máquinas de votação solicitadas pela oposição. Além disso, a lei determina que haja novas eleições caso o presidente seja cassado antes de transcorridos dois terços do mandato; depois deste limiar, o vice assume até o fim do período. Pelo cronograma do CNE, o referendo só ocorreria depois de 10 de janeiro de 2017, garantindo a permanência do chavismo no poder ainda que Maduro saísse derrotado.
As pesquisas de opinião indicavam que, se o referendo ocorresse, Maduro perderia o cargo, e por isso a ditadura encontrou outros meios de sobreviver. Uma semana antes do período marcado para a coleta dos 20% de assinaturas, o processo foi bloqueado pelo CNE e por vários tribunais estaduais, todos completamente aparelhados pelo chavismo. O ente eleitoral e as cortes alegaram que teria ocorrido fraude na primeira fase do processo, o recolhimento de assinaturas de 1% dos eleitores – a oposição entregara 1,9 milhão de nomes, quando o necessário eram apenas 200 mil.
Se em 2022 não se repetir a arbitrariedade de 2016, os movimentos democráticos ainda têm outro obstáculo a superar: a possibilidade de fraude eleitoral, apontada em vários pleitos recentes no país, incluindo aquele que Maduro supostamente venceu em 2018. Bastaria ao ditador permitir que o referendo ocorresse e manipular os resultados da votação para que ele tivesse em mãos um trunfo para usar contra os que desejam a volta da democracia à Venezuela, afirmando que foi desejo dos venezuelanos que ele permanecesse comandando o país, assim como ocorrera com Hugo Chávez em 2004 – o caudilho enfrentou um referendo revogatório, que venceu com 60% dos votos.
Por fim, há um detalhe a que Maduro ainda poderia se apegar como peça de propaganda: ele poderia afirmar que, ao desejarem um referendo que revogue o mandato do ditador, os movimentos democráticos estariam finalmente admitindo que Maduro tem um mandato, o que não é verdade. O chavista ocupa o poder de forma ilegítima e fraudulenta, sem reconhecimento de ampla maioria das democracias ocidentais. Ainda que Maduro detenha o poder de fato, graças à lealdade do poder armado oficial e paramilitar, o presidente de direito continua a ser o interino Juan Guaidó.
Os partidos e movimentos democráticos venezuelanos já estiveram diante deste dilema em outras ocasiões. Há, por exemplo, quem defenda o boicote às eleições porque participar delas seria uma espécie de legitimação do poder dos bolivarianos; já os grupos que pretendem o referendo revogatório acreditam que é preciso explorar todos os meios previstos institucionalmente para finalmente remover o ditador da vida política venezuelana. O fato é que todas as tentativas de restaurar a democracia no país falharam até o momento: a pressão internacional e os esforços de mediação não funcionaram; o comando das Forças Armadas, comprado com petrodólares, continua leal ao ditador; todas as demais instituições (à exceção da Assembleia Nacional legítima, eleita em 2015) seguem aparelhadas pelo bolivarianismo; e o povo doente e faminto está incapaz de tomar as ruas contra quem o oprime. Se há uma fresta legal pela qual o regime pode ser retirado, vale a pena usá-la.
Pragmatismo não deve salvar Lula dos problemas que terá com Trump na Casa Branca
Bolsonaro atribui 8/1 à esquerda e põe STF no fim da fila dos poderes; acompanhe o Sem Rodeios
STF condenou 265 pessoas pelos atos do 8/1 e absolveu apenas 4
“Desastre de proporções bíblicas”: democratas fazem autoanálise e projetam futuro após derrota