Bastaram três minutos para que o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), o mais votado do Brasil nas eleições de outubro de 2022, se visse engolido por uma controvérsia que envolve a imunidade parlamentar e o alcance da liberdade de expressão. Durante a sessão de 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o parlamentar foi à tribuna da Câmara dos Deputados, colocou uma peruca loira, intitulou-se “deputada Nicole” e passou a fazer uma série de críticas à ideologia de gênero, especialmente a dois aspectos específicos: a possibilidade de homens biológicos, uma vez declarando-se mulheres, frequentarem banheiros femininos e participar de provas esportivas femininas, competindo contra (e quase sempre vencendo tranquilamente) atletas nascidas mulheres.
Em reação ao discurso, a bancada do PSol ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma notícia-crime contra o deputado por suposta “transfobia” – que a corte, em decisão judicial recente, equiparou ao racismo. Em outra frente, deputados do PSol, do PSB e do PDT apresentaram representação solicitando ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que abra processo disciplinar no Conselho de Ética da casa, e que Nikolas Ferreira seja cassado por quebra do decoro parlamentar. O próprio Lira chegou a criticar o discurso em publicação no Twitter, dizendo que o deputado “merece minha reprimenda pública por sua atitude no dia de hoje [quarta-feira]”.
A notícia-crime no Supremo levará os ministros a, mais uma vez, enfrentar o tema da imunidade parlamentar, que a Constituição Federal, no caput do artigo 53, define ao dizer que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Esta é a chamada “imunidade material”; existe outra, dita “processual”, relativa a crimes cometidos pelo parlamentar e que foi relativizada pelo próprio Congresso em 2001, ao permitir que deputados e senadores pudessem ser processados no STF sem necessidade de autorização dos seus pares. Este, no entanto, não é o caso de Nikolas Ferreira, pois é evidente que estamos diante de um caso de “opiniões, palavras e votos”.
Poucos temas no mundo atual pedem tanto debate quanto a ideologia de gênero. O fato de um parlamentar se dedicar a tratar do tema em uma casa legislativa não é apenas natural – é desejável e meritório
Existem motivos importantíssimos para o constituinte de 1988 ter protegido desta forma as “opiniões, palavras e votos” dos parlamentares, a ponto de inserir no caput o termo “quaisquer”. Quando a Constituição foi redigida, apenas duas décadas haviam se passado desde que um “crime de opinião” serviu como estopim para que o país mergulhasse na pior fase da ditadura militar: em 2 de setembro de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves ocupou a tribuna da Câmara para pedir aos brasileiros que boicotassem as comemorações da Independência, disparando uma cadeia de acontecimentos que culminaria no Ato Institucional 5: o governo militar pressionou para que Moreira Alves fosse cassado, mas os deputados (incluindo vários membros da Arena, o partido governista) resistiram e mantiveram seu mandato; no dia seguinte, a ditadura publicava o AI-5, que entre outras medidas incluía o fechamento do Congresso.
Mas, além do aspecto histórico, há uma questão de princípios que seria válida ainda que o país jamais tivesse passado pela ditadura ou pelo AI-5: o debate parlamentar precisa de liberdade total, a ponto de haver a necessidade de resguardar da repressão estatal até mesmo manifestações que estariam vedadas aos demais cidadãos, ainda que por vezes os parlamentares deem contornos pouco civis ao debate, abusando da veemência ou agredindo o bom senso e os ditames mais básicos da boa educação. Ao manter esse trecho da Carta Magna intocado em 2001 enquanto relativizavam a imunidade processual, os congressistas deram nova demonstração da importância da liberdade de expressão como fundamental para a democracia.
Os deputados que foram ao Supremo contra Nikolas Ferreira sabem disso. Mas sabem também que o próprio Supremo já vem fazendo letra morta da proteção constitucional, como no caso do ex-deputado Daniel Silveira, preso em 2021, e do ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado em 2015, quando era deputado federal. Há, no entanto, uma diferença relevante entre esses dois casos e o atual: se Silveira havia atacado membros do STF e defendido o AI-5, e se Bolsonaro havia de fato ofendido a colega Maria do Rosário (e mesmo assim ainda consideramos que em ambos os casos o STF se equivocou em suas decisões), Nikolas Ferreira foi à tribuna da Câmara não para atacar ou ofender pessoas ou grupos, mas para discutir ideias – ou ao menos uma ideia em específico, a de que o gênero é uma construção social e pode ser autoatribuído de acordo com o sentimento do indivíduo, prescindindo da biologia.
As teorias de gênero, desde seu surgimento, com os trabalhos do médico John Money e de teóricos como Judith Butler e Shulamith Firestone, são cercadas de controvérsia, e não só podem como devem ser discutidas e questionadas, pois não estão isentas de contestação. Elas vêm sendo assunto de debate acadêmico e político há anos, em inúmeros países. Ficou célebre o episódio em que o Conselho Nórdico de Ministros (que inclui autoridades de Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia e Islândia) ordenou o fechamento do Instituto Nórdico de Gênero, promotor de ideias ligadas às teorias de gênero, graças ao documentário norueguês Hjernevask (“Lavagem cerebral”), de 2010, que listava afirmações dos ideólogos de gênero e as desmentia recorrendo a pesquisas nos campos da neurociência e biologia evolutiva (o instituto foi posteriormente reestruturado e reativado).
Se os pressupostos da ideologia de gênero estão sujeitos a debate, também o estão as consequências práticas de tais teorias. É o caso da permissão para que mulheres transgênero (ou seja, que nasceram homens) estejam em ambientes de uso exclusivo feminino, de banheiros a prisões – e há entidades feministas, como a britânica Fair Play for Women e a neozelandesa Speak Up for Women, que apontam os riscos de tais permissões, incluindo a possibilidade de abuso sexual. Ambas as entidades também participam da discussão sobre a participação de transgêneros no esporte feminino, que envolve a necessidade de equilibrar inclusão e justiça para com as competidoras nascidas mulheres. Várias federações esportivas internacionais, apoiadas em sólidos estudos acadêmicos comprovando que as vantagens atléticas adquiridas por quem passou pela puberdade como homem se mantêm mesmo que esta pessoa, após declarar-se mulher, reduza sua taxa de testosterona, resolveram banir a participação de transgêneros, como a de rugby; nos esportes aquáticos, só podem competir em provas femininas os transgêneros que tenham feito a transição antes da puberdade.
Em outras palavras, poucos temas no mundo atual pedem tanto debate quanto a ideologia de gênero. E, considerando que seus defensores pretendem levá-la ao currículo escolar e usá-la como ponto de partida para uma série de políticas públicas, o fato de um parlamentar se dedicar a tratar do tema em uma casa legislativa não é apenas natural – é desejável e meritório. Foi exatamente isso que Nikolas Ferreira fez, justificando a etimologia do termo “parlamento”, o local por excelência dedicado ao debate. Quem quer que assista ao breve discurso com um mínimo de honestidade intelectual haverá de reconhecer que o deputado não prega ódio, violência ou discriminação contra transexuais; seu objetivo é discutir (ainda que o curto tempo de que dispõe não lhe permita fazê-lo de forma aprofundada) a ideologia de gênero e suas consequências na sociedade.
Aqueles que gostariam de ver Nikolas Ferreira condenado ou cassado têm uma visão pobre da liberdade de expressão. Eles querem uma liberdade retalhada, onde certos temas são proibidos, e os permitidos só podem ser discutidos nos termos aceitos pelos censores
Justamente por isso a tentativa de calar Ferreira, seja pela notícia-crime no Supremo, seja pelo pedido de cassação na Câmara, é, em primeiro lugar, profundamente equivocada, pois nega a dinâmica própria da democracia, ao pretender impedir que o parlamento seja o local por excelência da discussão completamente livre e desimpedida sobre temas que podem e devem ser debatidos – e, como afirmamos, poucos assuntos se encaixam tão bem nesta definição quanto a ideologia de gênero e sua aplicação prática na sociedade. Em segundo lugar, é perniciosa, porque revela o desejo de fazer prevalecer as próprias ideias não pela demonstração de sua superioridade em um debate justo, mas pela supressão completa da opinião contrária, classificada como “discurso de ódio”, o termo-muleta para se pleitear a transformação de certos temas nos tabus do século 21. A sanha censora ainda usa de outros artifícios como o “lugar de fala”, que restringe a discussão apenas a determinados grupos ideologicamente uniformes, bloqueando a contestação, por mais bem fundamentada que seja, caso venha de alguém que não pertença a determinada categoria. Ao colocar uma peruca e intitular-se “deputada Nicole”, Ferreira quis debochar desta estratégia retórica, e não dos transexuais, como aliás fica evidente no início de seu discurso.
Aqueles que gostariam de ver Ferreira condenado por “transfobia” ou cassado por quebra de decoro (punição que também seria absurda, pelos mesmos motivos já explicados) têm uma visão da liberdade de expressão radicalmente diferente daquela de Oliver Wendell Holmes Jr., juiz da Suprema Corte norte-americana, a de “liberdade para as ideias que detestamos”. Eles querem uma liberdade retalhada, onde certos temas são proibidos, e os permitidos só podem ser discutidos nos termos aceitos pelos censores. Afogar esta liberdade, mesmo quando exercida no espaço sagrado de uma tribuna parlamentar, é tarefa a que só podem se dedicar autênticos tiranetes, inimigos da democracia que hipocritamente dizem defender.