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Editorial

O STF e o comando da Polícia Federal

Presidente Jair Bolsonaro e o novo chefe da Polícia Federal Alexandre Ramagem: proximidade com a família Bolsonaro.
Jair Bolsonaro e Alexandre Ramagem: preferido para comandar a PF tem proximidade com a família Bolsonaro. (Foto: Carolina Antunes/Presidência da República)

A nomeação, pelo presidente Jair Bolsonaro, de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal gerou uma enxurrada de ações pedindo que o Judiciário suspendesse a indicação do até então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Uma ação da Rede Sustentabilidade foi negada na primeira instância por um juiz de Brasília, mas o ministro do STF Alexandre de Moraes atendeu a um pedido do PDT, suspendendo a nomeação e, consequentemente, a posse de Ramagem, que deveria ter ocorrido nesta quinta-feira. O que começou sob o signo da controvérsia continua assim: à substituição, sem nenhum motivo razoável, de um diretor-geral da PF segue-se uma interferência do Judiciário cujos desdobramentos mostrarão se estamos, mais uma vez, diante de atitudes que borram os limites da separação entre poderes.

Verdade seja dita, neste momento em que a pandemia do coronavírus atinge contornos extremamente preocupantes, com o Brasil ultrapassando a China em número de mortos, a última preocupação de Bolsonaro deveria ser com uma substituição no comando da Polícia Federal, muito menos com as motivações que o Brasil conheceu quando o então ministro da Justiça, Sergio Moro, anunciou sua demissão. Recorde-se que, segundo Moro, o presidente da República buscava um diretor-geral que fosse próximo e estivesse disposto a passar-lhe informações que iam além daquelas habitualmente enviadas pelos órgãos de segurança e inteligência, requisitos que Maurício Valeixo não cumpria. Além disso, a exoneração de Valeixo ocorreu na calada da noite, sem que nem ele nem Moro tivessem sido informados, disparando o processo que culminou com a saída do ex-juiz da Lava Jato. Bolsonaro se comportou de forma indigna em todos os momentos desta longa queda de braço com um de seus melhores ministros, e isso jamais poderá ser olvidado.

A fumaça existe. Se há fogo ou não só as investigações e o plenário do Supremo dirão

Mas o que dizer da nomeação propriamente dita? Designar o diretor-geral da PF é uma prerrogativa presidencial garantida pelo artigo 84 da Constituição – mais especificamente, no caso da diretoria-geral da PF, seu inciso XXV, “prover e extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei”. O mesmo vale para ministros de Estado, o que nos traz à mente dois episódios semelhantes ao de Ramagem: a nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, em 2016; e a nomeação de Cristiane Brasil como ministra do Trabalho de Michel Temer, em 2018, ambas suspensas por meio de liminares judiciais mantidas no STF.

No caso de Lula, os áudios liberados pelo então juiz Moro deixavam evidente o desvio de finalidade e a tentativa de obstruir a Justiça, livrando o ex-presidente de prestar contas à Lava Jato em Curitiba; era um vício de origem que efetivamente justificava a anulação do ato presidencial. Já a situação de Cristiane era diferente; alegou-se a violação do princípio da moralidade, descrito no artigo 37 da Constituição, pois ela tinha contra si condenações trabalhistas, mas sua aplicação na situação específica envolveu tanta subjetividade que a decisão judicial acabou se configurando uma intromissão indevida do Judiciário nas atribuições do Executivo. Ramagem está mais para Lula ou para Cristiane Brasil?

A decisão de Alexandre de Moraes cita alguns elementos-chave tirados de declarações tanto de Moro quanto de Bolsonaro. Na manhã do dia 24, o ex-ministro lembrou que o nome de Ramagem já tinha sido citado como candidato ao posto, e logo depois descreveu o que Bolsonaro dizia esperar de um diretor-geral; naquela mesma tarde, o presidente da República confirmou que buscava informações da PF e queria “todo dia ter um relatório do que aconteceu, em especial nas últimas 24 horas”, embora tivesse enfatizado especificamente o caso da facada que sofreu durante a campanha eleitoral de 2018; conversa pelo WhatsApp exibida por Moro ainda na noite do dia 24 mostrou que Bolsonaro via na investigação aberta contra deputados bolsonaristas por atos que incluíam a defesa do fechamento do Congresso e do STF “mais um motivo para a troca” de Valeixo. Moraes poderia, ainda, ter citado a mensagem de Bolsonaro a uma seguidora nas mídias sociais, que reclamou da proximidade de Ramagem com os filhos do presidente da República. Bolsonaro respondeu que “Antes de conhecer meus filhos eu conheci o Ramagem. Por isso deve ser vetado? Devo escolher alguém amigo de quem?”, como se a amizade pudesse ser critério válido para nomeações, e não a competência ou a afinidade de ideias.

Alguns desses elementos, isoladamente e na ausência dos demais, jamais poderiam embasar uma interferência do Judiciário sobre o Executivo. Se assim fosse, esticando a situação ao limite, nenhuma nomeação que partisse da caneta de Bolsonaro seria aceitável, pois, dado o “perfil” desejado pelo presidente segundo as declarações de Moro, qualquer indicado – ainda que não tivesse sido citado textualmente pelo ex-ministro, como Ramagem o foi – seria imediatamente visto como alguém que concordaria em ir além de suas funções para agradar o presidente. É o tipo de raciocínio que levaria a consequências desastrosas. Mas a chave, aqui, é o conjunto montado pelas diversas declarações e circunstâncias que envolvem a nomeação e o relacionamento entre Ramagem e os Bolsonaro. Some-se a isso o fato de que uma decisão liminar é algo provisório, que requer o periculum in mora (“perigo na demora”) e o fumus boni juris (“fumaça do bom direito”). O próprio fato de já haver inquérito no STF para apurar as afirmações de Moro e Bolsonaro serviu de base para Moraes conceder a liminar, afirmando ainda que “apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial”.

Ou seja, a fumaça existe. Se há fogo ou não só as investigações e o plenário da corte dirão – e foi justamente a análise do plenário que faltou tanto no caso de Lula quanto no de Cristiane Brasil. Interferências do Judiciário em nomeações do Executivo são assunto grave demais para que a jurisprudência se baseie em liminares. Que desta vez os ministros resolvam conjuntamente a controvérsia, balizando critérios para a ação em casos extremos e que não façam pouco da importância da separação entre poderes.

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