A julgar pelos prazos concedidos ao Ministério da Saúde e à Procuradoria-Geral da República no âmbito da ADPF 989, protocolada no STF por entidades pró-aborto contrárias à nova norma técnica do governo a respeito do atendimento ao aborto em caso de estupro, o ministro Edson Fachin em breve poderá se pronunciar sobre o caso. Este é, então, um momento propício para recordar um aspecto específico da controvérsia atual, e que esperamos ver levado em conta na decisão do ministro: de todas as normativas sobre o assunto emitidas até hoje pelo Ministério da Saúde, a de 2022 é aquela que mais está em linha com toda a legislação sobre o tema, o que inclui não apenas o Código Penal, mas outras leis que tratam do combate à violência sexual.
Reconhecemos que há duas interpretações conflitantes sobre o status do aborto nos casos previstos no artigo 128 do Código Penal – gestação resultante de estupro e risco de vida para a mãe – e no caso de feto anencéfalo, após julgamento de 2012 no Supremo. Já explicamos com detalhes neste espaço, em várias ocasiões, por que consideramos mais acertada a interpretação segundo a qual o aborto, no Brasil, é sempre um crime, embora não tenha punição nestes casos, apoiando-nos na redação que o legislador quis dar ao texto, comparando-o com outras situações similares presentes no mesmo Código Penal. Mas é fato que parte significativa da comunidade jurídica considera que a ausência de punição significaria, também, a ausência de crime – e a própria prática do sistema de saúde, que realiza abortos nesses casos, endossaria essa interpretação. De qualquer forma, independentemente do que se defenda sobre a existência ou não de um suposto “aborto legal” no país, ambos os lados hão de concordar que, fora dessas circunstâncias, o aborto sempre é um crime e jamais deveria ser realizado na rede hospitalar. Este ponto é crucial para se entender como governos anteriores pretenderam burlar a lei sob o pretexto do atendimento à gestante vítima de violência sexual.
De todas as normativas sobre aborto em caso de estupro emitidas até hoje pelo Ministério da Saúde, a de 2022 é aquela que mais está em linha com toda a legislação sobre o tema
No fim de 2004, durante o governo Lula, houve uma atualização das normativas a respeito da realização de abortos em caso de estupro – a primeira delas datava de 1998, quando José Serra era ministro da Saúde no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Uma alteração fundamental foi a dispensa da apresentação de boletim de ocorrência para que a gestante pudesse realizar o aborto na rede pública de saúde, bastando a ela alegar que havia sido violentada e engravidado em decorrência da agressão. Não é preciso ir muito longe para concluir que, assim, estavam abertas as portas para a realização de abortos “sob demanda” em hospitais públicos, desde que os reais motivos fossem ocultados e substituídos por uma alegação de estupro.
O boletim de ocorrência, é bem verdade, não constitui prova de que a violência efetivamente ocorreu. Mas sua exigência era o mínimo que se poderia esperar para garantir que não houvesse um “passe livre” para o aborto na rede pública. A notificação à autoridade policial dispararia uma investigação que, mesmo nos casos em que o agressor não pudesse ser identificado, ao menos poderia atestar que a violência foi real. Dispensando-se a apresentação do BO, a gestante ficaria livre até mesmo da eventual responsabilização por falsa comunicação de crime, prevista no artigo 340 do Código Penal, além de haver outra consequência igualmente óbvia e grave: a impunidade completa do estuprador. Em 2011, uma nova norma técnica, publicada já no governo Dilma Rousseff, manteve a dispensa do boletim de ocorrência, bastando a assinatura de um termo de relato circunstanciado.
As normas técnicas emitidas durante os governos Lula e Dilma, portanto, falseavam o sentido da lei penal – ressaltamos, independentemente da interpretação que se faça sobre haver ou não crime nos três casos já citados de aborto – ao usar o direito à privacidade da mulher como escudo para a possível realização impune e “segura” de abortos em casos não previstos no artigo 128 do Código Penal. Foram um artifício usado pelo abortismo que marcou esses dois governos para ampliar por via executiva o acesso ao aborto, nem que para isso fosse preciso recorrer à mentira e à fraude.
A nova normativa não traz nenhuma “restrição” ou “perseguição” à mulher vítima de violência; o que ela faz é fechar a porta que o petismo havia aberto para o aborto livre. Ao exigir que a autoridade policial seja notificada sobre o estupro e determinar que a equipe médica preserve os restos mortais do feto para que se possa identificar o agressor por meio de exames genéticos, a norma técnica de 2022 busca perseguir e punir o estuprador, não a mulher que aborta. Ela simplesmente reforça o que já constava na Portaria 2.282 do Ministério da Saúde, de 2020, que por sua vez buscava adaptar as regras da pasta a duas leis aprovadas nos anos anteriores: a Lei 13.718/18, segundo a qual qualquer crime contra a liberdade sexual leva a ação penal pública incondicionada, independentemente da idade da vítima, e a Lei 13.931/19, que já estabelecia a notificação compulsória nos serviços de saúde públicos e privados.
Atribuir à nova norma técnica uma intenção persecutória contra a mulher, portanto, não passa de uma peça de propaganda do lobby abortista. O texto busca, isso sim, dificultar a realização de abortos que não estejam nos casos explicitamente mencionados no Código Penal com a exclusão da pena, e proporcionar aos órgãos de investigação os meios de identificar e punir os estupradores, acabando com o acobertamento e a impunidade.
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