O Ministério da Saúde publicou uma segunda versão – que se pretende ser a definitiva – da nota técnica sobre a realização do aborto em gestantes vítimas de estupro na rede pública de saúde. Era um passo esperado, pois o próprio ministério já havia antecipado que poderia haver revisões depois das audiências públicas sobre o documento; além disso, o texto também foi alvo de uma ação protocolada por entidades pró-aborto no Supremo Tribunal Federal (STF). Esta segunda versão mantém pontos muito importantes da nota original, mas também tem alguns recuos que, se por um lado podem até desapontar parte do movimento pró-vida, por outro demonstram a necessidade de escolher bem as lutas prioritárias quando se trata de desfazer décadas de abortismo incrustado no poder público e nas estruturas de atendimento à saúde.
Foi retirada, por exemplo, a menção à interpretação correta dos trechos do Código Penal a respeito do aborto em casos de estupro e risco de vida para a mãe (aos quais o Supremo acrescentou, em 2012, a anencefalia do feto). Como já afirmamos em diversas ocasiões, de fato não existe “aborto legal” no Brasil – a expressão deixa subentendido que a prática não seria crime, mas o artigo 128 usa a expressão “não se pune” e, se o legislador quisesse ter legalizado o aborto nesses casos, teria escrito “não é crime”, como ocorre em outros trechos da lei penal, que a Gazeta do Povo já citou em ocasiões anteriores. Um exemplo é o do homicídio culposo em que o juiz não aplica a pena ao réu por ele ter sofrido de forma grave as consequências de seu ato, como prevê o artigo 121, parágrafo 5.º do Código Penal – ninguém fala em “homicídio legal” nestes casos, por mais que se trate de situação idêntica à do aborto no artigo 128, em que há ausência de punição, não de crime.
Colocar o poder público em sintonia com o sentimento pró-vida da maioria da população brasileira é tarefa árdua e de médio e longo prazo. Importa escolher bem que lutas priorizar, manter os avanços conquistados e seguir trabalhando lentamente nas outras frentes
Podemos lamentar que o governo deixe de dar um endosso oficial a uma interpretação correta da lei, especialmente quando a interpretação equivocada é tão prevalente que chega a convencer até mesmo pessoas de boa fé que são visceralmente contrárias ao aborto? Certamente sim, mas também é preciso olhar o copo meio cheio. Como disse à Gazeta o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, esta continua a ser a posição do governo federal; a retirada evita dar brechas para que a Justiça resolva derrubar o documento todo. Além disso, podemos dizer que a versão inicial cumpriu um papel importante ao trazer de volta o debate sobre o erro da expressão “aborto legal”. Muitas pessoas perceberam ter sido enganadas pela militância abortista e por governos anteriores, e presidenciáveis tiveram de vir a público dizer o que pensam sobre o tema. O silêncio foi quebrado. Por fim, é preciso dizer que, de qualquer maneira, a consequência lógica da interpretação correta da lei não seria aplicada: ora, se o aborto é crime em todos os casos, não faz sentido que ele seja oferecido na rede pública, pois estaríamos diante do apoio estatal ao cometimento de crimes. Como, no entanto, os hospitais seguirão realizando a prática, estamos diante de uma “aceitação tácita” da interpretação errada da lei. Nas circunstâncias atuais, nem uma única vida seria salva por esse debate.
Situação bem diferente é a de um trecho que o Ministério da Saúde fez questão de manter: a recomendação para que, a partir da 22.ª semana de gestação, não seja realizado o aborto, e sim a antecipação do parto, empregando-se todo o esforço possível para que o bebê possa sobreviver e se desenvolver fora do útero – esta, sim, uma determinação com potencial de salvar muitas vidas. Ao contrário de uma infinidade de critérios que a militância abortista desejaria definir como marco para o acesso ao aborto amplo, geral e irrestrito, o liminar das 22 semanas não tem nada de arbitrário: ele está de acordo com normativas da Organização Mundial da Saúde e com a mais recente literatura médica a respeito da chamada “viabilidade” – a possibilidade razoável de sobrevivência do feto caso ele tenha acesso a cuidados médicos, como UTIs neonatais, para chegar ao grau de desenvolvimento que, normalmente, seria atingido no ventre da mãe. Tanto é assim que até mesmo normas técnicas emitidas durante o governo Dilma Rousseff, que abriu uma série de brechas ilegais para a prática do aborto, afirmavam que “não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional”.
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A manutenção deste trecho na versão final da nota técnica é fundamental. Diante de uma gravidez resultante de violência sexual e que já entrou na 22.ª semana, há duas possibilidades: ou se encerra a gestação pela antecipação do parto, dando à criança uma chance (ainda que pequena) de sobreviver e ser amada por outra família, se este for o desejo da mãe; ou se encerra a gestação matando um ser humano indefeso, inocente e viável, dentro do ventre da mãe, forçando-a depois a expulsar um cadáver. Ora, a segunda opção representa a barbárie pura em relação à criança, e também é uma violência enorme para com a mãe, pois o aborto seguido pela expulsão do feto morto não deixa apenas o trauma psicológico: ele é um procedimento com vários riscos para a saúde da gestante, riscos esses que não existiriam ou seriam incrivelmente menores caso se realizasse a antecipação do parto. O dilema moral posto por tal situação é de resolução muito simples para quem tenha um mínimo de bom senso e compaixão, mas a ânsia do abortismo em seu desejo de matar mostra que bom senso e compaixão podem ser itens em falta entre certos segmentos da sociedade, e nessas horas faz-se necessária a voz da autoridade para que a barbárie não tenha trânsito livre.
Quem dera fosse possível desfazer com uma única canetada todo o terreno que o abortismo conquistou ao longo de décadas de militância e aparelhamento das estruturas de Estado, do sistema de saúde ao Ministério Público e ao Judiciário. A realidade, no entanto, é outra: colocar o poder público em sintonia com o sentimento pró-vida da maioria da população brasileira é tarefa árdua e de médio e longo prazo. O Ministério da Saúde agiu com elogiável coragem na primeira versão de sua nota técnica, e com elogiável prudência na segunda versão. Importa escolher bem que lutas priorizar, manter os avanços conquistados e seguir trabalhando lentamente nas outras frentes, como a da conscientização a respeito do status legal do aborto nos casos listados pelo artigo 128 do Código Penal. E esta é tarefa que cabe a todos nós, não apenas ao governo.