Desde o último dos ultimatos relacionados a mais uma ação do STF no inquérito das fake news, o governo parece estar passando por uma mudança geral na comunicação e na forma mesma de fazer política. As declarações de Jair Bolsonaro para a imprensa, bem como as suas postagens na internet, sofreram mudança nítida na forma e no conteúdo. O foco nas críticas contra opositores, nos ataques à imprensa e no enfrentamento direto parece ter sido substituído por uma atitude mais positiva, com ênfase na entrega de resultados, na negociação e na atividade mesma do governo. Uma postura que deve render bons frutos.
Recentemente, um episódio envolvendo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e os militares no governo ilustrou bem isso. No último dia 13, o ministro fez uma declaração infeliz ao aventar uma associação das Forças Armadas a um genocídio praticado pelo governo brasileiro. A crítica foi rebatida de maneira dura por setores da ala militar, incluindo a mobilização de reservistas em torno de uma denúncia contra o ministro na Procuradoria Geral da República (PGR) por infração à Lei de Segurança Nacional (LSN). A situação poderia ter escalado para outro episódio de conflito entre Poderes, mas, dessa vez, foi Bolsonaro quem se esforçou por colocar panos quentes. Apesar de reiterar apoio ao ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o presidente ligou para o ministro do STF e instou para que seu subordinado fizesse o mesmo, a fim de dirimir problemas de interpretação e ruídos de comunicação.
Essa mudança foi seguida do abandono da política de ultimatos que vinha caracterizando o governo desde o início da crise da Covid-19, mais particularmente a partir de 15 de março. De início, foi interpretada por muitos apoiadores do presidente como uma espécie de rendição aos adversários. Alguns analistas associam o movimento com a prisão de Fabrício Queiroz, que teria colocado o senador Flavio Bolsonaro numa situação política mais complicada. Outros destacam a aproximação com o Centrão como elemento de diferenciação, que teria implicado, inclusive, numa redução do poder de barganha do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com impactos prováveis nas próximas eleições do Legislativo. Existem aqueles que procuram relacionar a mudança a um enfraquecimento da ala ideológica do governo, isto é, os apoiadores do presidente que gravitam em torno do filósofo Olavo de Carvalho, detentores de grande capacidade de mobilização nas redes sociais.
Nenhuma dessas teorias por si mesma parece explicar o fato, principalmente porque a mudança de forma e de conteúdo na comunicação e na forma de atuação política não foi necessariamente acompanhada do esvaziamento de bandeiras caras ao presidente e seus apoiadores. É o que se viu, por exemplo, com as recentes nomeações para o Conselho Nacional de Educação (CNE), de pessoas indicadas pelo ex-ministro Abraham Weintraub e ligadas diretamente ao Secretário Nacional de Alfabetização, Carlos Nadalim, quase uma unanimidade nas redes sociais bolsonaristas. Até mesmo a nomeação do novo gestor do Ministério da Educação, Milton Ribeiro, após algumas idas e vindas do Planalto, parece ter sido realizada pensando em agradar aos diversos grupos que compõem hoje o governo, associando um perfil discreto, com formação técnica e simpatia declarada com bandeiras conservadoras.
É importante ressaltar o caráter positivo desta nova fase, se ela se mostrar enquanto tal nos meses seguintes. A lógica da civilidade é própria da atividade de governo, que funciona numa temperatura diferente dos períodos de campanha eleitoral. Isso significa que é necessária atenção especial não só para o conteúdo, mas para a forma como se estabelece a comunicação.
Por “civilidade”, entenda-se o apelo ao diálogo respeitoso, ainda que firme e eventualmente contundente no conteúdo, como forma de resolver conflitos. Agressões de qualquer espécie, inclusive as verbais, deveriam ser sempre evitadas, principalmente nos momentos de maior tensão. O mesmo se diga de provocações desnecessárias. As instituições e as pessoas que as representam precisam ser respeitadas e as discordâncias devem se estabelecer dentro de limites definidos pela lei, mas também por uma longa tradição de cordialidade que sempre foi característica da sociedade brasileira. A capacidade de contemporização, de conciliação de antagonismos, de tolerância às críticas (sobretudo as legítimas, mas em alguma medida também as abusivas), sempre foi própria dos grandes líderes. Na prática, e com frequência, no entanto, em nosso país e em muitos lugares, essa capacidade se misturou e se confundiu com omissões, compadrios e covardias, o que leva não poucos cidadãos a terem aversão à idéia de negociação ou contemporização ou mesmo diálogo. Mas não precisa ser assim. E o que é claro é que a atitude de enfrentamento contra tudo e todos é, além de obviamente ineficaz, uma demonstração clara de imaturidade e incapacidade de abarcar intelectualmente a variada gama de alternativas legítimas que todos os problemas sociais e de governo apresentam. A recuperação de uma sã cordialidade, nas lides públicas e no dia a dia da convivência social, é um imperativo para o país. É na verdade uma marca, um traço da nossa cultura, que se vem perdendo, mas que é crucial para trilhar os verdadeiros caminhos do desenvolvimento.
Neste momento, são muitas as pautas públicas decisivas para a transformação do país: para ficar apenas no campo econômico, as reformas tributária e administrativa, a elaboração dos marcos regulatórios de diversos setores da infraestrutura, uma nova lei das falências, para citar apenas as mais emblemáticas. Nenhuma delas prosperará se a relativa trégua das últimas semanas for encerrada. A sociedade espera ansiosamente que a mudança aparente no modus operandi do governo Bolsonaro seja duradoura e não escorada em práticas espúrias no velho estilo toma-lá-dá-cá. Com a abertura ao diálogo, todos ganham. Precisamos torcer para que esse clima de estabilidade seja a regra daqui para diante.