Ainda nos bastidores, uma nova queda de braço entre governo e certos grupos de pressão no Congresso já se desenha, e tem prazo definido para seu desfecho: em 23 de junho, a medida provisória que prevê a privatização da Eletrobrás e sua inclusão no Plano Nacional de Desestatização vai caducar, o que na prática impedirá sua venda ainda neste ano. O relator da MP, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), vem tentando incluir no texto uma série de mudanças que desagradam a equipe econômica; em alguns casos, parece já ter havido recuo, mas em outros pontos, como a destinação do dinheiro da privatização, os congressistas parecem mais dispostos a enfrentar o Ministério da Economia.
A privatização da Eletrobrás é necessidade antiga, mas sempre barrada no Legislativo, seja porque os partidos de esquerda são contrários a qualquer protagonismo do setor privado na economia, seja porque muitos partidos e bancadas regionais enxergam estatais desse porte como feudos particulares, atribuindo-se o “direito” de indicar apadrinhados para cargos de gerência, diretoria ou comando de subsidiárias, usando as nomeações como moeda de troca política por apoio parlamentar – um vício da vida política brasileira que apenas acrescenta mais um argumento em favor da privatização. Com dois projetos de lei sobre o tema parados no Congresso, um deles enviado durante a gestão de Michel Temer e o outro, pelo governo atual, o presidente Jair Bolsonaro agiu e editou a medida provisória, ainda no rescaldo dos eventos que levaram à troca na presidência da Petrobras e colocaram em xeque os compromissos do presidente com o programa de desestatização.
O insaciável apetite por recursos de certos setores do parlamento não pode fazer a privatização da Eletrobrás naufragar justamente quando ela está mais próxima de acontecer
Pelo texto original da MP, a privatização ocorrerá pela emissão de novas ações, que reduziriam a participação do governo, dos atuais 61% para menos de 50%. A União, no entanto, ficará com uma golden share, que lhe daria poderes especiais de veto a certas decisões mesmo que o governo não seja mais o acionista majoritário; esta já era uma primeira concessão da equipe econômica, contrária ao mecanismo por julgar que ele desvalorizaria a empresa. Mas Nascimento foi além e propôs um fatiamento da Eletrobrás, dividida em quatro empresas: Eletronorte, Chesf, Furnas e uma estatal formada por Itaipu e Eletronuclear, que já não poderiam mesmo ser privatizadas pelas regras atuais. As outras três seriam vendidas separadamente, o que complicaria ainda mais a venda, pois a Eletrobrás já tem ações listadas em bolsa e o desmembramento não é operação simples. O relator teria desistido dessa ideia após conversas com outros parlamentares, o governo e investidores.
O novo pomo da discórdia é bem mais trivial: a divisão do dinheiro levantado com a venda das novas ações e com a “descotização” das usinas da companhia. Atualmente, com a expectativa de se levantar quase R$ 60 bilhões, está previsto que R$ 25 bilhões entrem no caixa do governo; outros R$ 25 bilhões sejam destinados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) ao longo de 30 anos, ajudando a reduzir o custo da energia elétrica; e outros R$ 8,75 bilhões, em um período de dez anos, iriam para fundos de apoio às regiões Norte, Nordeste e Sudeste. Os parlamentares querem reduzir a parte da União e engrossar o CDE e os fundos regionais. Já há até mesmo quem proponha deixar o governo sem um único centavo, com todo o dinheiro sendo destinado às outras duas finalidades.
Desde a discussão sobre a ajuda federal a estados e municípios para recompor as perdas de arrecadação causadas pela Covid-19, em meados do ano passado, até o recente episódio do inviável orçamento de 2021, o governo vem perdendo quase todas as disputas desse tipo. E a equipe econômica já admite alterações no rateio se isso efetivamente destravar a votação, até porque o retrospecto mostra que esta é a melhor (se não for a única) chance de o governo conseguir vender uma de suas “joias da coroa”. O tamanho da concessão dependerá do jogo de forças no Congresso e da capacidade de articulação do Planalto.
O principal objetivo de leilões de infraestrutura e privatizações não é reforçar os cofres públicos, mas fazer valer o princípio da subsidiariedade, reequilibrando a balança do protagonismo entre setor público e privado, deixando o governo no lugar correto, que é o de suporte, enquanto os indivíduos e as empresas por eles criadas e geridas colocam seu potencial a serviço da sociedade. Mesmo assim, é uma consequência desejável que a venda de ativos gere recursos para o governo – ainda mais na situação precária em que se encontram as contas públicas no Brasil. O insaciável apetite por recursos de certos setores do parlamento não pode fazer a privatização da Eletrobrás naufragar justamente quando ela está mais próxima de acontecer.