No último dia do prazo para sancionar a lei de abuso de autoridade aprovada pelo Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro acabou com o suspense e vetou nada menos que 19 trechos da lei, incluindo artigos inteiros, mas contemplando também parágrafos ou incisos de outros artigos. No fim da noite de quarta-feira, Bolsonaro já havia dito pelo Twitter que acolheria integralmente as sugestões do ministro da Justiça, Sergio Moro; da Advocacia-Geral da União; da Controladoria-Geral da União; e da Secretaria-Geral da Presidência da República.
A maior parte dos vetos, como era de se esperar, concentrou-se nas condutas que a lei descrevia como abuso de autoridade, mas Bolsonaro também vetou um artigo bastante problemático da lei: o 3.º, que, ao prever a possibilidade de ação civil privada contra o agente público caso o MP não se pronunciasse, abria as portas para a retaliação de investigados, acusados, réus e condenados contra procuradores, promotores e juízes. Ocorre que, com o veto do artigo todo, a decisão acabou sendo inócua, pois passa a vigorar o que está nos artigos 29 e 30 do Código de Processo Penal, que preveem basicamente o mesmo procedimento, permitindo a ação civil privada caso o MP não proponha a ação civil pública. Teria sido muito mais adequado o veto apenas aos parágrafos 1.º e 2.º do artigo 3.º, mantendo o caput segundo o qual “os crimes previstos nesta lei são de ação penal pública incondicionada” – isso fecharia de vez as portas para a vingança de investigados e acusados.
Bolsonaro acabou mantendo na lei certos trechos que ainda causarão muitos problemas a autoridades idôneas
Entre os artigos que Bolsonaro também vetou estavam alguns trechos que, como já havíamos apontado neste espaço, colocariam grandes dificuldades ao trabalho de investigação, caso do artigo 30, que puniria quem desse “início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente” – a chave, aqui, estava na expressão “sem justa causa fundamentada”. Da mesma forma, descrições vagas de certas atitudes também acabaram eliminadas do texto, como foi o caso da mobilização de veículos, pessoal ou armamento “de forma ostensiva e desproporcional” na execução de mandados de busca e apreensão, citada no artigo 22.
Mesmo alguns vetos que parecem mais controversos têm sua razão de ser. É o caso do inciso III do artigo 13.º, que puniria quem “constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a (...) produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”. Por mais problemático que seja não considerar abuso de autoridade o fato de constranger alguém a se incriminar, também é preciso ter em mente que a redação do trecho agora vetado acabaria dando munição a quem, por exemplo, critica a Lava Jato sob o argumento de que algumas prisões tinham o único objetivo de forçar delações premiadas.
No entanto, há pelo menos um outro veto que precisa de justificativa mais aprofundada: o do artigo 35, que criminalizaria o ato de “coibir, dificultar ou impedir, por qualquer meio, sem justa causa, a reunião, a associação ou o agrupamento pacífico de pessoas para fim legítimo”. Obviamente, a liberdade de reunião continua em vigor independentemente do veto, mas seria preciso explicar melhor por que a violação desse direito não deveria ser considerada abuso de autoridade.
Não são apenas alguns dos vetos que estão sujeitos a crítica: Bolsonaro acabou mantendo na lei certos trechos que ainda causarão muitos problemas a autoridades idôneas, devido à redação pouco precisa. É o caso do artigo 10, que trata da condução coercitiva “manifestamente descabida”; do artigo 31, sobre o ato de “estender injustificadamente a investigação”; e do artigo 37, que criminaliza o ato de “demorar demasiada e injustificadamente no exame de processo de que tenha requerido vista em órgão colegiado” – por mais que segurar processos por longos prazos seja, de fato, um procedimento muito condenável, a ausência de prazos específicos na lei deixa brechas para todo tipo de interpretação. Nesse sentido, o que fica na lei é bem mais preocupante que eventuais vetos desnecessários, até porque, com a sanção desses trechos, eles ficam cristalizados na lei, sem possibilidade de mudanças no futuro próximo.
Os vetos terão de ser analisados na próxima sessão conjunta do Congresso Nacional. Que nesta ocasião os parlamentares tenham a decência que não tiveram os deputados, na sessão em que aprovaram a lei, quando recusaram a votação nominal. O eleitor tem o direito de saber de que lado estão seus representantes em uma questão tão crucial como é o estabelecimento de medidas que podem atrapalhar o combate à corrupção.
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