O candidato que disse não ter ido ao Círio de Nazaré, em Belém (PA), e às comemorações de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida (SP), porque não queria “misturar política com religião” acabou de renegar sua postura. Em um evento com mais de uma centena de líderes evangélicos, com direito a orações, bênçãos e imposição de mãos sobre um Lula de joelhos, o petista lançou uma “Carta Pública ao Povo Evangélico” em que faz uma série de afirmações a respeito de temas que interessam ao público cristão, especialmente os de cunho moral. No entanto, uma leitura atenta do texto, comparada com tudo o que Lula e o PT já disseram ou fizeram em relação a esses assuntos, mostra que a campanha petista está fazendo exatamente aquilo de que a esquerda vive acusando pastores: explorar a boa fé do povo. E isso se percebe tanto pelo que a carta diz quanto pelo que a carta omite.
Veja-se, por exemplo, o trecho que trata do aborto, um dos assuntos mais caros ao eleitorado cristão e sobre o qual Lula dissera, em abril, que “deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha”. O candidato não chegou nem mesmo a copiar Dilma Rousseff em carta similar publicada na campanha de 2010; naquela ocasião, a candidata disse que, “eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto”, enquanto Lula não fez promessa semelhante, limitando-se a dizer que “este não é um tema a ser decidido pelo presidente da República e sim pelo Congresso Nacional”.
O autoproclamado “homem sem pecados” quer convencer o público evangélico de que, uma vez eleito, governará levando em consideração as preocupações dos cristãos a respeito da defesa da vida e da família
Essa tentativa de se esquivar da responsabilidade é mentirosa, pois um presidente pode orientar sua base aliada a votar contra um eventual projeto que legalize o aborto, ou vetar uma lei em caso de aprovação, mas Lula não se comprometeu com nada disso. Além disso, as últimas décadas mostraram que o Poder Executivo tem muitas ferramentas para fazer avançar o abortismo, como as normas técnicas do Ministério da Saúde (e foi no governo Lula que o boletim de ocorrência foi dispensado para a realização, no SUS, de abortos em caso de gravidez resultante de estupro) e a escolha de ministros abortistas para o Supremo Tribunal Federal, como é Luís Roberto Barroso, indicado por Dilma.
A confusão só cresce quando Lula, tendo jogado nas costas do Legislativo a responsabilidade completa sobre uma eventual legalização do aborto no Brasil, tenta puxar para si o crédito por projetos de lei aprovados no Congresso. É o caso da mudança no Código Civil que inclui as organizações religiosas na lista de pessoas jurídicas de direito privado: a Lei 10.825/2003, sancionada por Lula, foi resultado de um projeto de lei de autoria de um deputado do PL. Lula ainda se refere ao texto como “assegurando a liberdade religiosa no Brasil”, como se esse direito estivesse ameaçado de alguma forma antes da Lei 10.825, quando na verdade a liberdade religiosa já estava consagrada na Constituição de 1988.
O ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado ainda tratou do tema das drogas – em que as comunidades cristãs têm um admirável protagonismo em seus esforços de recuperação de dependentes – ao prometer “fortalecer as famílias para que os nossos jovens sejam mantidos longe das drogas”. Aqui, no entanto, ele vai de encontro às diretrizes de sua própria legenda. A “descriminalização progressiva do consumo de drogas” consta no Caderno de Resoluções do 6.º Congresso Nacional do PT, realizado em 2017 (que, aliás, também pede a “descriminalização do aborto e regulamentação de sua prática no serviço público de saúde”). Mais recentemente, as Resoluções do Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT listam, como uma das prioridades da legenda, “cessar a guerra às drogas: regular, descriminalizar, redução de danos, educação e saúde”. Como isso ajudará as famílias a manter os jovens longe das drogas é algo comparável à famosa quadratura do círculo.
O autoproclamado “homem sem pecados” quer convencer o público evangélico de que, uma vez eleito, governará levando em consideração as preocupações dos cristãos a respeito da defesa da vida e da família. Mas a verdade é que, como no ensinamento bíblico, não é possível a Lula servir a esses dois senhores: as plataformas petistas se chocam frontalmente com muito daquilo que os cristãos têm em altíssima conta. E, neste famoso trecho do Sermão da Montanha, Cristo continua dizendo que quem tem dois senhores “ou se dedicará a um e desprezará outro”. O histórico de Lula é suficiente para sabermos quem acabará prestigiado e quem acabará desprezado caso ele saia vencedor em 30 de outubro.
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