A expressão "turma do ECA" (Estatuto da Criança e do Adolescente) não existe nos anais da República. Mas existe de fato. Desde a década de 1980 portanto, antes mesmo de o estatuto ser aprovado, em 1991 o movimento social registrou o surgimento de educadores e ativistas em tranças com os então chamados "meninos e meninas de rua". Românticos, sentavam-se nas esquinas com os guris, decididos a encontrar um final feliz para a legião dos Pixotes, qual o do cinema, que ganhavam as ruas do país. Desafiaram a máxima de que não havia salvação para a garotada. E provaram ter razão. Foi bonito de ver.
Para essa turma participante de um arrastão nacional que deu algum brilho à triste era "do fim das ideologias" a aprovação do documento ganhou um contorno algo messiânico, algo passeata na Central do Brasil. Mas não foi fogo de palha. Das sarjetas, o trabalho dos educadores de rua chegou ao Congresso, firmando-se como o mais sólido capítulo da História da Cidadania no Brasil. Difícil quem duvide, apesar de ainda que pena haver quem desconheça. Tornou-se, como dizem os educadores, um paradigma.
Há coisa de dois anos, quando o governo Lula intentou ampliar suas políticas para a juventude mobilizando a mocidade do país os agentes públicos envolvidos não escondiam qual era o seu desejo: contar com a "turma do ECA" para mobilizar o país em torno da população entre 18 e 29 anos. Quem sabe a rede da juventude fosse tão forte como a rede de proteção à infância.
Se a proposta fosse adiante, ora, a ajuda seria dada, a troca seria feita. Quanto a isso, espera-se que a presidente Dilma retome a questão. Adiante: a Lei Maria da Penha idem seria muito mais eficiente na defesa da mulher vitimizada se contasse com uma turma como a do ECA, garantindo não só a aplicação da norma, mas o volume e a credibilidade dos dados, ainda escassos, por motivos óbvios: não se sabe ao certo quantas mulheres apanham do marido porque os equipamentos de denúncia são frágeis, assim como ainda é frágil a relação das Delegacias da Mulher com a imprensa e com outras redes.
Já o retrato da infância e da adolescência no Brasil, por força do estatuto, é uma fotografia nítida e sem retoques. Idem para seus canais de diálogo com a mídia, mantendo qualquer abuso contra os pequenos na boca do trombone. Em miúdos prescindir da estrutura criada pelo ECA, além de ilegal, redunda numa solene falta de traquejo político. Essa turma não é só boa na garantia de direito. É também boa de briga. Eis o que se anuncia.
A Secretaria de Estado da Criança e da Juventude até pouco tempo a única do país no estilo está sendo convertida em Secretaria de Estado da Família e do Desenvolvimento Social, declaradamente com o intuito de replicar no governo estadual o modus operandi da Fundação de Ação Social, da prefeitura de Curitiba. Sabe-se que houve a intenção de despachar a estrutura do ECA como os 19 centros de socioeducação voltados para adolescentes em conflito com a lei para a Secretaria de Estado da Justiça.
Não se tratava de uma tragédia pelo menos uma dezena de estados brasileiros coloca debaixo do mesmo teto o sistema prisional e o socioeducativo. Mas a aproximação entre carcereiros e educadores é vista de esgueio por quem faz o manejo do estatuto. A parceria, em resumo, só pode se dar se houver o arreio de um projeto bem amarrado, aos cuidados por quem entende do riscado. Talvez esse projeto houvesse, mas foi impossível esconder o desapontamento e o sentimento de retrocesso com a mudança.
A turma do ECA estrilou. E a rede de proteção ficou nas raias da assistência social. Menos mal. Mas paira a sensação de que pode se tornar um apêndice no espetáculo em que costuma se converter o atendimento às famílias pobres e aos idosos. O drama da infância brasileira não se resume às necessidades básicas de alimento e cobertas, mas a chagas profundas, causadas pelo abandono familiar, pelo abuso sexual, pela exclusão escolar, pela violência, pela cooptação do crime organizado. Não é assunto para amadores.
No último dia de maio, a atual secretária da Família e do Desenvolvimento Social, Fernanda Richa, anunciou o investimento de R$ 13 milhões para reformas nos centros de ressocialização os censes. De acordo com o site do órgão, junto com a liberação, a secretária falou em políticas de metas e de resultados. É de dar calafrios pensar em gestão empresarial aplicada à vida dos meninos e meninas em situação de rua, vulnerabilidade e que mais palavras técnicas se possa usar para tratar de quem provou, tão cedo, do pior dos mundos.
Continua-se à espera. E a espera é que os ganhos do ECA não se convertam em matéria de desmanche político. ONGs, escolas e demais instituições se espelham nessa turma. Que a mudança operada pela administração atual avance no atendimento à família, como diz o novo nome, garantindo a volta dos adolescentes para casa. E que a palavra "desenvolvimento" tão cara a um Brasil cansado de derrotas não seja mais um peso às costas dos milhares de paranaenses que perderam o direito de ser criança. Tem-se uma dívida com eles uma dívida muito cara.