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Quando finalmente deixou para trás a ditadura de Augusto Pinochet e regressou à democracia, o Chile acabou não realizando um passo natural que tantas outras nações haviam promovido em transições similares: a elaboração de uma nova Constituição, condizente com o novo momento institucional, superando a legislação oriunda do período autoritário. Em vez disso, a opção dos chilenos foi emendar a carta pinochetista até onde foi possível. Mas, em outubro de 2020, o país finalmente decidiu que era hora de uma nova Constituição. E, neste mês de maio, a população elegeu os integrantes da Assembleia Constituinte.
Se por um lado este era um passo que teria de ocorrer mais cedo ou mais tarde, por outro ele revela o que acontece quando decisões tão cruciais são tomadas em momentos de convulsão social. A consulta popular sobre a redação de uma nova Constituição foi a resposta do presidente Sebastián Piñera a protestos que começaram pacíficos, mas degeneraram para a violência, com saques, depredação e mortes. O plebiscito de 2020 teve pouca participação: pouco mais de 50% do eleitorado; no entanto, a massiva aprovação da ideia de uma nova Carta Magna, com 78% dos votos para o “sim”, mostrou que, ao menos entre os que se dispuseram a ir às urnas, havia um consenso sobre a necessidade de deixar para trás a carta pinochetista.
A escolha dos chilenos era entre manter o atual modelo liberal, aperfeiçoá-lo por meio da subsidiariedade ou revertê-lo, inflando o Estado. O perfil da Assembleia Constituinte aponta para a terceira alternativa
A escolha dos constituintes se deu em momento semelhante de instabilidade, em que os protestos de rua foram substituídos pela crise causada pela pandemia de coronavírus. E o resultado foi uma derrota das forças políticas tradicionais, principalmente da direita, representada por Piñera – que, a despeito de ter conduzido uma campanha veloz de vacinação contra a Covid-19, deve deixar o governo no início do ano que vem com popularidade muito baixa. Em uma assembleia de 155 constituintes, a coalizão de Piñera, a Chile Vamos, de direita e centro-direita, conseguiu 37 cadeiras. Foi o melhor desempenho individual de um bloco partidário, mas de pouco adiantará. A coalizão de esquerda Apruebo Dignidad elegeu 28 constituintes, e a coalizão de centro-esquerda Lista del Apruebo terá 25 representantes – juntos, os dois blocos já superam o Chile Vamos.
Os candidatos independentes, muitos deles também organizados em blocos para superar cláusulas de desempenho, serão o fiel da balança, tendo conquistado 48 cadeiras: 25 para a Lista del Pueblo, de candidatos mais à esquerda; 11 para os Independientes No Neutrales, mais à direita; e 12 para outros independentes. Os 17 representantes das populações indígenas fecham a lista. “Os chilenos expressaram a necessidade de novos tipos de liderança, e é nosso dever escutá-los”, afirmou Piñera após a divulgação dos resultados, que também trouxeram outras derrotas para seu grupo político, já que a votação para a Assembleia Constituinte também serviu para escolher prefeitos, vereadores e governadores. Na capital, Santiago, o prefeito Felipe Alessandri, cujo partido é integrante do Chile Vamos, perdeu a reeleição para a vereadora Irací Hassler, do Partido Comunista.
Ideologicamente, a tendência é a de que a Assembleia Constituinte desenhe um modelo de Estado bastante diferente do atual. Chile Vamos e Independientes No Neutrales, somados, não terão os 52 votos (o equivalente a um terço do colegiado) necessários para barrar propostas, e terão de conquistar o apoio de pelo menos mais quatro independentes ou representantes indígenas se quiserem frear a esquerda e a centro-esquerda. Se não conseguirem esse apoio, são grandes as possibilidades de uma mudança radical na vida do país, hoje líder na América do Sul em indicadores como IDH e liberdade econômica – o que garantiu ao país um crescimento econômico considerável, a ponto de o Chile ser a única nação sul-americana a integrar a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O modelo liberal chileno não é perfeito; por mais que ele garanta a cidadãos e empresas uma necessária liberdade para empreender e conduzir suas vidas, a desigualdade social é considerável, e há setores em que o Estado poderia atuar, mas está praticamente ausente. Ao escolher seus constituintes, os chilenos tinham algumas opções: a manutenção do sistema atual; o seu aperfeiçoamento, garantindo uma atuação subsidiária do Estado, sem intervencionismos, mas complementando o que a iniciativa privada não consegue prover; e a sua reversão, com um Estado maior, populista, interventor e gastador, que promete demais e entrega pouco. O perfil da Assembleia aponta para esta última alternativa, mas apenas o início dos trabalhos mostrará se os constituintes estarão dispostos a reter o que há de bom no Chile atual, ou se realmente assistiremos a uma “brasileirização” do país.