Multa para quem desrespeitar pedestres – eis a boa notícia. A novidade vem de São Paulo onde desde o início de agosto os motoristas estão sendo penalizados – no bolso e com pontos na carteira – se pararem na faixa que não lhes pertence e se não derem seta de conversão, entre outras barbaridades.

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Não se trata, é verdade, da invenção da roda. A proteção ao cidadão que anda a pé está garantida no Código Brasileiro de Trânsito e não é aplicada por falta de fiscalização e por preguiça federal. A capital paulista nada mais faz do que garantir a letra. Mas dizer isso é pouco: o que se quer saber é se a vigilância vai virar rotina ou acabar em buzinaço.

Difícil encontrar coros de otimistas nas esquinas. Informações vindas da Pauliceia informam que ela continua desvairada. Não há efetivo suficiente para vistoriar os condutores, que continuam com os dedos médios ao alto e pés pesados no acelerador. Não bastasse, falta propaganda, fazendo da ação no Centro paulistano uma conversa doméstica no intervalo das novelas.

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É preciso convencer na marra. Afinal, supõe-se que desde a chegada do primeiro automóvel ao Brasil o pedestre foi relegado ao posto de cidadão de segunda categoria, a uma chusma deserdada, o que explica nossa sólida tradição no ramo de atropelamentos e de calçadas torturantes.

É célebre, por exemplo, a ojeriza que o escritor Albert Camus sentiu pelo país ao fazer seu primeiro safári pelas ruas de São Paulo, em 1949. Faz tempo. A turbamulta hoje deixou de ser um privilégio da maior cidade do país. E temos pago caro por isso. A lógica é elementar: com menos gente andando a pé as vias perdem o oxigênio e se degradam com a velocidade de uma pera madura, levando a rodo o comércio, as relações de vizinhança e a paz.

Parece que se descobriu essa verdade um pouco tarde, e corre-se atrás para devolver as ruas a quem pertencem. Esse é o ponto em que estamos. Se virar tendência nacional, a onda de multas paulistanas pode se tornar, digamos, um marco legal nas políticas de trânsito, fazendo do Brasil um país civilizado, enfim. Foi assim com o cinto de segurança – e funcionou.

Mal não faria pegar carona nessa conversa para injetar algumas gotas de cultura cívica nas veias de sua excelência, o motorista. Ao afirmar o pedestre como cidadão de direito, o poder público deveria elevá-lo também à condição de elemento fundamental à vida econômica e cultural das cidades, desfazendo um mal-entendido que começou, digamos, na aurora da arquitetura moderna. Quem pensou em Brasília, a cidade sem esquinas e sem pedestres, acertou.

Relembrando. O transeunte ganhou aura na Belle Époque, quando foi endeusado por Baudelaire lá e por João do Rio cá. Vale frisar que o flâneur – o homem que zanza nos boulevards – não estava apenas à cata de fofocas, dos folhetins ou de moçoilas de chapéu emplumado. Ao circular, o sujeito que flanava se defrontava com a realidade dos miseráveis tanto quanto com escritores e bebedores inspirados. Eis o segredo.

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Essa rotina de alamedas apinhadas selou o destino do que se entendeu por cidade. Durou pouco. As urbes modernas se ocuparam de "matar as ruas", fazendo delas ou meras paisagens ou vias de passagem. Restaram para ela os arruaceiros, os desocupados da praça, os sem-teto, os idealistas e os sem-automóvel – para citar alguns nomes dados aos que insistem em usar as pernas para ir e vir. Vários deles, aliás, em perigo: a média de atropelados no Paraná é de 4 mil ao ano, 800 apenas em Curitiba.

Tudo indica que os tempos de violência bruta que estamos vivendo anunciam o esgotamento desse modelo. Não merece ser chamado de cidade um lugar que só serve a interesses imediatos, onde vigoram o anonimato e o individualismo. Hora de voltar às ruas. Difícil vai ser ensinar milhares de homens e mulheres adultas a circular por vias nunca dantes caminhadas.

O único remédio é reinventar a imagem do pedestre, o que os paulistanos estão se esforçando em fazer por força da lei. Reconhecido, o caminhante pode cumprir o destino tão bem descrito por uma boa leva de sociólogos e antropólogos desde meados do século 20. Mentes brilhantes como a do jesuíta Michel de Certeau (1925-1986) e Pierre Mayol se esforçaram para firmar a importância do homem da rua. Merecem ser ouvidos.

Aquele que gasta a sola do sapato, dizem, cria uma gramática própria na cidade. Sua prática diária de andança é cultural. O pedestre forma "frases" com suas escolhas urbanas, estabelecendo significados para os lugares onde pisa. Na rota que faz, planeja o mundo possível, um mundo que lhe é próximo e íntimo, pois pode senti-lo.

Com o pedestre, a cidade recupera a dimensão de casa, sem a qual nenhuma cidade é possível. Nessa casa, a relação com o outro – seja ele quem for – é aquecida a lenha. Novas redes sociais se realizam. A lei do consumo deixa de ser a medida de todas as coisas. É do resguardo dessa prática que trata cada multa – seja de R$ 85,12; R$ 127,69 ou R$ 191,53. Não salva a humanidade. Mas nos coloca ao pé dela.

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