Cidades inteligentes são aquelas que desenvolvem maior capacidade de integração de serviços básicos – como transporte e educação –, lançando mão, para isso, dos recursos digitais. A definição é da prestigiada administradora Rosabeth Moss Kanter, da Universidade de Harvard, nos EUA. Mas bem se podia lhe acrescentar que cidades inteligentes são aquelas que contam com mais e mais moradores dados a iniciativas públicas independentes. A presença ou não de associações, movimentos, núcleos culturais e ações coletivas não vinculadas ao Estado deveria funcionar como um termômetro da saúde de uma determinada região.

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Os efeitos das livres iniciativas são indiscutíveis, mas há de se lamentar, no Brasil, a lentidão em mensurar e apontar de forma mais precisa esses resultados. São, afinal, esclarecedores e poderiam melhorar a performance de muitas políticas públicas. Nem só de asfalto, praças, iluminação e escolas, afinal, vivem os cidadãos. As mesmas estruturas em bairros distintos, sabe-se, ganham usos diferentes, a depender da influência das pequenas redes ali em ação.

Uma doceira que dê aulas de culinária para os vizinhos; uma família que tenha adotado uma quadra baldia, plantando um jardim; um time de futebol que ocupe um campo abandonado, entre tantos outros exemplos, fazem parte das ações quase silenciosas que tornam possível o conceito de comunidade. O mesmo se diga da filantropia, palavra que entre nós ainda soa abstrata. A maioria dos brasileiros fica surpresa ao saber que orquestras inteiras são mantidas na América do Norte graças à contribuição anual dos espectadores. Esse modelo – que obviamente existe no país –, contudo, ainda esbarra na nossa lógica patrimonialista. É desejável que tal cultura seja combatida, em especial face ao aumento dos níveis de escolarização e de renda. O crescimento do consumo é louvável, mas torpe se não estiver acompanhado de espírito público, sem o qual a cidade não se torna pólis.

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Pode-se mesmo dizer que esse é um desejo da população mais esclarecida, como se pôde perceber na última semana, quando um número representativo de leitores da Gazeta do Povo manifestou sua admiração com duas reportagens publicadas no jornal: a dos "adoradores de árvores" – sobre homens e mulheres que, por livre iniciativa, trabalham em prol do meio ambiente no espaço urbano; e a da criação do Conselho de Segurança do tradicional bairro Mercês.

Ambientalistas de quarteirão e moradores que abraçam a diluição da violência são, sim, bases de uma cidade inteligente. Com o próprio braço e doando parte de seu tempo, combatem males trazidos pelo fin-de-siècle, como a palidez das relações sociais, o esquecimento da política e a artificialidade trazida pelo individualismo e consumismo desmedido, entre outros sintomas da chamada crise civilizatória.

A expressão "crise civilizatória" pode soar algo acadêmica, um assunto para estudiosos presos a alguma cúpula de cristal. Mas a situação atual é grotesca demais para ser tomada por rotina ou por teoria de uns poucos. O fenômeno da indiferença ganhou tal proporção que sociólogos como Gabriel Cohn, da USP, a veem como uma tradução contemporânea da ideia de barbárie. A gravidade que se avizinha é a de que a indiferença se torne estrutural, corroendo séculos de construção das práticas de civilidade e de civilização. Vale lembrar que o mundo moderno foi construído – embora não com esses termos – a partir dos conceitos de cuidado, alteridade e liberdade regulada pelo interesse comum, tal como pensou Descartes ao tratar da liberdade individual e seus limites.

À revelia desse patrimônio intelectual, contudo, o cabo de guerra que pende para a "guinada subjetiva", na sua pior face, tem deixado estragos. Sem pequenas e grandes reações coletivas, o risco é que vigore um tempo de altíssima tecnologia, porém desumanizado, como previram muitos filmes de ficção científica. A emoção dos leitores diante dos "adoradores de árvores" é um sinal de que muitos estão dispostos a dizer "não" a esse modelo. E o dizem mudando aqui e ali o mapa de concreto que deseja ser cidade de fato.