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Editorial

O colapso do Afeganistão

Membros do Talibã passam por rua de Cabul após o grupo islâmico dominar a capital do Afeganistão. (Foto: Stringer/EFE/EPA)

“Os talibãs não são o exército do Vietnã do Norte. Nem se comparam em termos de capacidade. Não há circunstância nenhuma em que tenhamos pessoas sendo evacuadas do teto da embaixada norte-americana no Afeganistão. Não há comparação”, afirmou o presidente norte-americano, Joe Biden, em 8 de julho. Menos de um mês e meio depois, helicópteros norte-americanos realizavam a evacuação da embaixada do país em Cabul, enquanto o Talibã ocupava a capital afegã, encerrando uma campanha de conquista rápida e vitoriosa ao mesmo tempo em que duas décadas de invasão norte-americana no país asiático terminavam da forma mais desastrosa possível para os que tiveram a sorte de escapar, e especialmente para os que ficam, novamente submetidos ao jugo de extremistas islâmicos.

A invasão norte-americana, realizada em 2001, contou com apoio da comunidade internacional – a ponto de haver tropas de outros países colaborando no esforço militar –, como resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro em Nova York e Washington. O objetivo era desmantelar a Al-Qaeda, e para isso seria necessário também derrubar o regime talibã, que, embora não fosse considerado um grupo terrorista propriamente dito, dava abrigo a Osama Bin Laden e seus seguidores. O Talibã caiu após poucas semanas de campanha terrestre. Bin Laden seria encontrado no Paquistão e morto pelas tropas norte-americanas dez anos depois, em 2011.

O erro crucial de Joe Biden foi seguir adiante com a retirada quando já estava evidente que o vácuo deixado pela saída norte-americana seria rapidamente ocupado pelo retorno de um extremismo islâmico nada disposto a cumprir os termos combinados em 2020

Por mais defensáveis que fossem as motivações norte-americanas para sua incursão no Afeganistão, a verdade é que a invasão se mostrou um fracasso, tanto em seu objetivo principal como nos objetivos secundários. A Al-Qaeda continua ativa, com ramificações espalhadas pela Ásia, pelo Oriente Médio e pelo norte da África. Além disso, o Afeganistão jamais abraçou a democracia representativa nos moldes ocidentais, e o Talibã – ironicamente, oriundo do movimento guerrilheiro bancado pelos Estados Unidos para resistir à invasão soviética dos anos 80 do século passado – jamais chegou a se enfraquecer, como bem demonstra a ofensiva atual.

Diante de tamanho desperdício de recursos e vidas, a retirada não chegava a ser uma insensatez completa, e já vinha sendo planejada desde o fim do mandato de Donald Trump, que chegara a assinar um acordo com o Talibã. Diversas pesquisas de opinião apontavam um apoio à retirada que variava de 60% a 70%, inclusive após o início da ofensiva islamita. O erro crucial de Joe Biden foi seguir adiante com os planos quando já estava evidente que o vácuo deixado pela saída norte-americana seria rapidamente ocupado pelo retorno de um extremismo islâmico nada disposto a cumprir os termos combinados em 2020, com todas as catastróficas consequências que isso teria, especialmente para os afegãos que não compartilham das convicções dos talibãs – sem falar daqueles que chegaram a colaborar com os norte-americanos ou com o governo afegão apoiado pelos EUA, e que agora estão marcados para morrer.

Biden repete, assim, o equívoco de Barack Obama na primeira retirada de tropas norte-americanas do Iraque, concluída em 2011. Sem que estivessem finalizados os esforços de estabilização do país e fortalecimento do exército regular, o espaço ficou aberto para o avanço do que ficaria conhecido como Estado Islâmico, que chegou a ocupar território considerável no norte do Iraque e levou o governo do país a solicitar nova intervenção norte-americana. No caso do Afeganistão, analistas militares ainda apontam que os Estados Unidos erraram grosseiramente, oferecendo ao governo afegão um poderio militar altamente tecnológico para ser operado por um exército repleto de jovens sem instrução, em um país com infraestrutura precária de energia elétrica e de comunicação.

Os erros norte-americanos poderiam ser ao menos mitigados se o Talibã se visse às voltas com vizinhos poderosos igualmente interessados no enfraquecimento do extremismo islâmico. No entanto, não é o que ocorre. China e Rússia não fecharam suas embaixadas em Cabul e nem precisarão fazê-lo, pois já se mostraram dispostos a reconhecer os talibãs como interlocutores legítimos – o embaixador russo, por exemplo, se encontrará com representantes do novo governo afegão nesta terça-feira. A ditadura de Xi Jinping, que persegue muçulmanos em seu próprio território, já negociava com o Talibã desde 2019 e só tem a ganhar com a desmoralização dos Estados Unidos. Pequim e Moscou, assim, dão nova demonstração de que, para ambos os regimes, a dignidade humana está subordinada a conveniências políticas.

O resto do mundo enxerga com preocupação o colapso do governo afegão, substituído por uma teocracia que, durante sua primeira passagem pelo poder, já deu inúmeras mostras de não ter tolerância alguma para com diversos grupos e minorias, por exemplo negando às mulheres o direito à educação em nome de sua interpretação da lei islâmica. A comunidade internacional pode até repetir as sanções impostas ao Afeganistão, mas bastarão alguns poucos aliados poderosos à sua volta para que os talibãs possam muito bem conviver como Estado pária aos olhos do Ocidente enquanto segue aterrorizando a população afegã.

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