Diante de tantas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) que colocam freios ou dificultam o combate à corrupção e a devida punição dos corruptos condenados, vem como um alento o resultado elástico do julgamento que permitiu o compartilhamento de dados bancários e fiscais obtidos por órgãos como a Receita Federal e a Unidade de Inteligência Financeira (UIF, antigo Coaf) com o Ministério Público, sem a necessidade de autorização judicial. Na quinta-feira, o voto dos últimos cinco ministros fechou o placar em 9 a 2, após Dias Toffoli, cuja tese inicial saiu derrotada, mudar seu posicionamento – o que fará dele o relator do acórdão, em vez de Alexandre de Moraes, que havia iniciado a divergência.
Com isso, caiu a liminar do presidente da corte que travava todos os processos e julgamentos em que tais dados tinham sido compartilhados sem aval prévio da Justiça. A liminar havia sido concedida em julho, a pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), investigado pela suposta prática de “rachadinha”, a apropriação de parte dos salários de assessores de seu gabinete quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro – os dados que embasavam a investigação do MP fluminense tinham sido levantados pelo Coaf. O julgamento encerrado na quinta-feira não se debruçou sobre o caso específico do senador, mas ele é uma das pessoas afetadas pela derrubada da liminar.
O compartilhamento de dados entre órgãos de Estado para fins de investigação não é uma relativização do sigilo bancário ou fiscal
Personalizar a questão, no entanto, é reduzir demais o impacto do que acabou de ser decidido. A decisão do Supremo é um enorme auxílio para o combate à corrupção como um todo, e não apenas neste ou naquele caso. Embora a ação julgada pelo STF dissesse respeito ao compartilhamento de dados feito pela Receita Federal, os ministros discutiram a possibilidade de ampliar seu escopo para incluir também a UIF. Ainda falta definir as regras específicas para a UIF e para a troca de informações como um todo – por exemplo, se o Ministério Público pode requerer os dados, ou se o compartilhamento precisa ocorrer sempre por iniciativa da Receita ou do UIF –, o que o Supremo fará na próxima semana, mas desde já está definido que o envio de dados sem autorização judicial é legal. Está prática coloca o Brasil em sintonia com os procedimentos empregados em países desenvolvidos, e foi sintomático que até mesmo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tivesse se manifestado, antes do julgamento, demonstrando preocupação com um desfecho que atrapalhasse as investigações, especialmente de crimes de lavagem de dinheiro.
Compreende-se a preocupação com os sigilos bancário e fiscal, dados que, mesmo sem estarem explicitamente mencionados na Constituição, são protegidos por dizerem respeito à intimidade do cidadão. Mas o compartilhamento entre órgãos de Estado para fins de investigação não é uma relativização deste sigilo – e, a depender da situação, o não compartilhamento seria até mesmo caracterizado como omissão. Como bem afirmou a ministra Cármen Lúcia, “é dever do agente público, ao se deparar com fatos criminosos, comunicar o Ministério Público como determina a lei, mas não constitui violação ao dever do sigilo a comunicação de quaisquer prática de ilícitos”. Essa comunicação não quebra o sigilo, apenas o transfere, e até continua a haver responsabilização por eventuais vazamentos. Além disso, como também ressaltou a ministra, o sigilo não pode ser usado como um escudo conveniente para que se cometam crimes.
No julgamento desta quinta-feira, o Supremo soube encontrar o equilíbrio necessário entre a garantia dos direitos constitucionais dos brasileiros e a dureza no combate ao crime, sem restringir indevidamente o uso dos instrumentos legais e o funcionamento dos órgãos de investigação. Em casos anteriores, como na nulidade de julgamentos por questões de prazos diferenciados nas alegações finais, a corte nem sempre tem conseguido esse equilíbrio, e por isso a decisão sobre o compartilhamento de dados tem de servir como marco para guiar os ministros quando voltarem a analisar casos deste tipo.