No início de 2019, logo que assumiu seu atual mandato na presidência da Câmara dos Deputados, coincidindo com o início do governo de Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia (DEM-RJ) deixou claro que os temas ligados a comportamento e costumes não seriam sua prioridade enquanto a pauta da recuperação econômica e das reformas não estivesse concluída. Na prática, tal decisão acabava calando todos os que se guiaram por questões morais ao votar em Bolsonaro e em parlamentares com ele alinhados. Recentemente, no entanto, Maia se encarregou de descumprir a própria promessa, quando articulou para que se votasse rapidamente o PL 399/2015, que, sob o pretexto de facilitar o acesso a medicamentos derivados do canabidiol, permitiria o plantio de maconha no Brasil e abriria brechas para seu uso recreativo sob o disfarce de receita médica. Só a forte resistência da sociedade e de outros deputados impediu que a tramitação seguisse em frente.
A ação de Maia foi além de uma simples quebra do que havia prometido em 2019; não apenas quis botar em votação um tema comportamental, como ainda tentou promover um projeto de lei que ia na direção diametralmente oposta daquilo que desejavam os brasileiros que levaram ao poder a plataforma de costumes apoiada por Bolsonaro. Fica, então, a pergunta: haveria espaço para essa plataforma voltar a andar no Congresso Nacional? O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), acredita que sim e disse estar articulando para destravar três temas: a educação domiciliar, ou homeschooling, regras para o porte de armas e legislação de trânsito. Por enquanto, segundo o deputado, não há nada certo, muito menos uma data para que projetos de lei sejam apreciados; afinal, o dono da pauta ainda é Rodrigo Maia.
Destravar bons projetos de lei no campo dos costumes ainda em 2020 seria excelente, mas, nestas circunstâncias excepcionais, os avanços podem esperar um pouco mais, desde que não haja retrocessos
Que pautas de comportamento podem caminhar ao lado de reformas macroeconômicas foi demonstrado pelo próprio Maia quando tentou fazer andar o PL 399 em meio não apenas à reforma tributária, mas a todas as questões ligadas à pandemia de Covid-19 e as medidas necessárias para a recuperação econômica após o tombo causado pelo coronavírus. Até haveria, portanto, possibilidade de que uma articulação bem feita conseguisse destravar bons projetos de lei ainda em 2020, o que seria excelente para o país. Mas podemos também conceder que a economia, agora, exige uma atenção até maior que antes do surgimento da pandemia, e que os temas de costumes fiquem para um momento seguinte. Desde que não haja retrocessos, como haveria com o PL 399, os avanços podem esperar um pouco mais.
De qualquer forma, este é um assunto que não pode estar de fora das articulações para a escolha do sucessor de Rodrigo Maia. Não se pode anular completamente essa dimensão da atividade parlamentar, como se fosse algo sem a menor importância. E não só porque esse foi um tema que teve importância decisiva na eleição de Bolsonaro, mas porque se trata uma pauta verdadeiramente progressista: não a intromissão indevida do Estado na vida das pessoas, mas a defesa da vida e da família, a proteção da dignidade humana e de direitos fundamentais do cidadão. São exemplos práticos disso tanto a regulamentação do homeschooling citada por Barros quanto o Estatuto do Nascituro e projetos de criminalização da homofobia que respeitem as liberdades religiosa e de expressão e a objeção de consciência.
O poder que os presidentes da Câmara e do Senado têm sobre a pauta torna imprescindível que eles permitam uma discussão ampla no parlamento sobre todos os tipos de temas. Quando, pela vontade de um único político, trava-se todo um conjunto de assuntos, a ação parlamentar fica manca. Não é necessário, embora certamente seja benéfico, que os detentores desses cargos compartilhem das convicções das dezenas de milhões de brasileiros a respeito da pauta comportamental, mas é preciso que eles não a bloqueiem para não calar a voz dessa parcela significativa da população.