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Editorial

O Congresso e os limites ao ativismo do STF

O prédio do Congresso Nacional, visto da sede do STF. (Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

Por muitos e muitos anos o Supremo Tribunal Federal foi avançando cada vez mais sobre as prerrogativas do Legislativo. Legalização do aborto e das drogas, privatização de estatais e participação de políticos em suas instâncias de direção, marco temporal, equiparação da homofobia ao racismo, contribuição assistencial obrigatória para sindicatos e relativização da imunidade parlamentar foram apenas alguns dos assuntos em que os ministros do STF atropelaram, estão atropelando ou gostariam de atropelar o Congresso Nacional, ignorando ou reescrevendo como bem desejam as leis definidas pelos representantes do povo, ou até mesmo a Constituição Federal. Até agora, a reação se limitava a reclamações isoladas ou de grupos sem força política suficiente para se impor. No entanto, a situação parece estar mudando.

Vários projetos de lei e propostas de emenda à Constituição estão tramitando no Congresso Nacional, com maior ou menor apoio dos presidentes da Câmara e do Senado, que têm o poder de travar ou de colocar na pauta os projetos. Mandatos fixos, novos limites de idade para aposentadoria, revisão de critérios para indicações à suprema corte, e até a possibilidade de reversão de decisões que invadirem as prerrogativas do Legislativo estão na mesa. Alguns dos atuais membros da corte já reagiram, criticando qualquer possibilidade de mudança – um dos opositores mais vocais às PECs é o decano do Supremo, Gilmar Mendes.

As regras que regem a composição do Supremo não são algo imutável por natureza; são assunto passível de debate e alteração pelos representantes do povo. O que é preciso evitar, em qualquer mudança, é o casuísmo

No entanto, é preciso lembrar que as regras que regem a composição do Supremo não são algo imutável por natureza; são assunto passível de debate, e os representantes do povo têm todo o direito de alterar desde o número de ministros até a duração de sua passagem pela corte, da maneira como julgarem mais adequada. Democracias sólidas adotam diferentes modelos; nos Estados Unidos, o mandato é vitalício; na Alemanha, um juiz do Tribunal Federal Constitucional permanece na corte por no máximo 12 anos ou até completar 68 anos, o que ocorrer primeiro. O que é preciso evitar, em qualquer mudança, é o casuísmo. Alterações como essas não podem ocorrer por insatisfação com a atual composição da corte ou para reduzir o efeito de escolhas que o atual presidente da República possa vir a fazer se tiver a oportunidade, mas sim por uma escolha de princípios a respeito do que se deseja em termos de “velocidade de renovação” do Supremo; para isso, bastaria que as novas regras não se aplicassem aos atuais membros da corte, ou aos indicados durante o atual mandato presidencial.

O mesmo se aplica a métodos de escolha de integrantes da corte: há nações onde ela depende apenas do Poder Executivo, outras em que o governante escolhe entre nomes previamente selecionados e apresentados a ele, e outras que envolvem mais de um poder. A esse respeito, em ocasiões anteriores a Gazeta do Povo já defendeu que o sistema de indicação livre do presidente da República com necessidade de aprovação do Senado, como ocorre nos Estados Unidos e no Brasil, é o melhor entre os modelos adotados em nações democráticas – no caso brasileiro, algumas das nomeações recentes escancaram problemas não do sistema, mas das pessoas: de quem escolhe, de quem influencia as escolhas, e de quem tem a missão constitucional de aprovar os qualificados e barrar os ineptos. Isso não significa, no entanto, que o Congresso não teria o poder de alterar esse processo de escolha.

Outros projetos de lei ou PECs são de natureza um pouco diferente, pois buscam mudar o funcionamento da corte ou limitar suas decisões. E o ativismo judicial não é a única distorção que precisa ser combatida. Pensemos, por exemplo, na banalização das decisões monocráticas, que ainda por cima permanecem valendo por períodos longuíssimos sem a análise do plenário – um caso particularmente escandaloso foi o das liminares de Luiz Fux que mantiveram o pagamento indiscriminado de auxílio-moradia a juízes, que vigorou por quatro anos e jamais chegou ao plenário. Não se trata, evidentemente, de amarrar as mãos dos ministros; há situações que exigem respostas rápidas e individuais, mas é preciso que elas sejam logo validadas pela turma ou pelo plenário, para que tenhamos não “11 Supremos”, mas um Supremo, onde prevaleça a colegialidade. A PEC 8/21, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e já aprovada na CCJ do Senado, atua neste sentido, por exemplo impondo prazos para que liminares “caduquem”, como ocorre com as medidas provisórias do Poder Executivo.

Mais delicada é a discussão sobre a possibilidade de o Legislativo anular decisões do Judiciário, prevista na PEC 50/23, chamada “PEC do Equilíbrio entre Poderes”. O texto, de autoria do deputado Domingos Sávio (PL-MG), prevê que um projeto de decreto legislativo pode suspender uma decisão do Supremo. Para ser apresentado, esse PDL precisaria do apoio de um terço dos senadores e dos deputados; e, para sua aprovação, maioria de dois terços nas duas casas, em duas votações. Em comparação, uma PEC exige o mesmo número de votações e votos para aprovação, mas para ser apresentada bastam as assinaturas de um terço dos membros de qualquer uma das casas legislativas.

Se chegamos a esse ponto, a responsabilidade certamente é dos ministros do STF, que abandonaram a autocontenção e abraçaram com gosto o papel de “editores de um país inteiro”

Por mais que o Congresso tenha a obrigação constitucional de zelar por suas prerrogativas, e por mais que essas prerrogativas sejam sistematicamente violadas pelo Supremo, há um risco real de se levar o pêndulo para o outro extremo, trazendo não um equilíbrio, mas apenas invertendo o sinal do desequilíbrio. A reversão de uma decisão do Supremo deveria ser algo mais extraordinário que a aprovação de uma PEC, e por isso seria razoável que o número de votos exigido para que decisões do STF fossem revertidas fosse ainda mais alto que o necessário para emendar a Constituição. Além disso, preocupa a formulação aberta da PEC, que permite a anulação de qualquer decisão que “extrapole os limites constitucionais”. Sem que sejam estabelecidos critérios mais específicos sobre o que configuraria tal “extrapolação”, há chance de o Congresso, por conveniência política, acabar anulando decisões do STF que, embora impopulares, estejam dentro das funções da corte – uma situação tão indesejável quanto a que vemos hoje, com os atores em papéis inversos.

Se chegamos a esse ponto, a responsabilidade certamente é dos ministros do STF, que abandonaram a autocontenção e abraçaram com gosto o papel de “editores de um país inteiro”, na infeliz formulação de Dias Toffoli. A reação do Congresso pode até terminar como mais um caso em que apenas se criam dificuldades para se vender facilidades, mas é evidente que algo tem de ser feito para se conter o ativismo judicial, que viola a separação de poderes e danifica a democracia. Os caminhos são muitos – uns mais adequados que outros –, e alguns deles nem chegaram a ser explorados; valeria a pena, por exemplo, melhorar a legislação sobre crimes de responsabilidade cometidos por ministros do STF. Se o Congresso tratar do tema com a seriedade que os magistrados supremos não demonstram quando se trata de passar por cima do Legislativo e até da Constituição, a democracia brasileira sairá fortalecida.

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