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Editorial

O debate sobre a maconha volta ao Congresso

Projeto de lei sobre uso terapêutico de componentes da maconha quer liberar o cultivo da planta no Brasil. (Foto: Unsplash)

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Por mais que, ultimamente, os engenheiros sociais dedicados em impor à sociedade brasileira pautas deletérias amplamente rejeitadas pela população recorram muito ao Poder Judiciário, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, eles nunca desistiram completamente da via legislativa. As questões relativas ao porte e uso das drogas são um caso emblemático. O STF analisa desde 2015 um caso que pode levar à descriminalização do porte de maconha, mas sempre houve projetos de lei com o mesmo objetivo ou até com propostas mais ousadas no Congresso Nacional. E, quando nenhum deles anda, o caminho é pegar carona em outras propostas, como está ocorrendo neste momento com o Projeto de Lei 399/2015, que tramita na Câmara dos Deputados.

Originalmente, a ideia do deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE) era alterar um único artigo da Lei de Drogas (11.343/2006), para permitir a comercialização, com algumas restrições, de “medicamentos que contenham extratos, substratos, ou partes da planta denominada Cannabis sativa, ou substâncias canabinoides”. De imediato, perceba-se que o texto não dá margem para as lendas urbanas sobre a erroneamente chamada “maconha medicinal”, até porque algo assim não existe: só o canabidiol, um dos componentes da maconha, tem uso terapêutico, e isso só depois de devidamente transformado em medicamento.

As portas que o PL 399 pode abrir são daquele tipo que se tornam impossíveis de fechar depois

O texto ganhou comissão especial, presidida pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP), e a relatoria foi concedida ao deputado Luciano Ducci (PSB-PR), que transformou o projeto simples de Mitidieri em algo radicalmente diferente e muito mais amplo. Ainda que pareça repleto de salvaguardas que em tese dificultariam o uso indevido da Cannabis, fato é que o substitutivo facilita enormemente que isso ocorra, a começar pela permissão para o cultivo em larga escala das plantas de maconha em todo o território nacional, desde que realizado por pessoa jurídica. Poderão ser cultivadas, inclusive, “plantas de Cannabis psicoativas para fins medicinais”, cujo teor de tetrahidrocanabidiol (o principal componente entorpecente da maconha) seja maior que 1% – teoricamente, o interessado em cultivar tais plantas terá de informar a quantidade desejada e ter autorização do poder público.

Como afirmou, em artigo recente na Gazeta do Povo, o deputado Diego Garcia (Podemos-PR), que se opõe ao projeto, fica assim aberta uma porta para o uso recreativo da maconha disfarçado de prescrição médica. O artigo 18 do substitutivo de Ducci prevê, por exemplo, a possibilidade de se receitar “formulações com níveis de Δ9 –THC [tetrahidrocanabidiol] superiores a 0,3%”, que “serão consideradas psicoativas”, e o artigo 20 acrescenta que “não haverá restrição quanto aos critérios para a prescrição de medicamentos canabinoides, desde que seja feita por profissional habilitado e com anuência do paciente ou responsável legal”.

Desde que o PL 399 foi originalmente formulado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou normas a respeito da fabricação, da comercialização e do uso de medicamentos à base de canabidiol. Os defensores do projeto, no entanto, alegam que tais normas são insuficientes, pois tais medicamentos têm custo elevado e são inacessíveis para a maioria dos doentes que deles necessitam, e por isso seria necessário permitir o plantio, algo que a Anvisa não prevê.

A relutância da agência se justifica plenamente; em dezembro de 2019, na mesma ocasião em que os diretores da Anvisa aprovaram a venda em farmácias de produtos com canabidiol, a proposta que permitiria o cultivo foi derrotada por três votos a um; o relator, William Dib, era favorável, mas prevaleceu o voto divergente de Antonio Barra, para quem havia sérias fragilidades relativas à segurança e que desaconselhavam a liberação do cultivo da Cannabis. Não há o menor motivo para crer que essas fragilidades tenham sido sanadas desde então, ou que o substitutivo de Ducci terá o condão de contê-las. É preciso encontrar outros meios de baratear os medicamentos e insumos, caso eles se mostrem imprescindíveis.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sempre deixou muito claro para quem quisesse ouvir que, durante seu período à frente da casa legislativa, os temas morais e de comportamento não caminhariam, pois era necessário dar prioridade às reformas econômicas. Curiosamente, uma exceção foi aberta para o PL 399, pois Maia anda empenhado não apenas em votar o projeto em plenário, mas em fazê-lo o quanto antes, enquanto o país continua às voltas com a pandemia de Covid-19. Felizmente, a sociedade civil e vários parlamentares estão dispostos a colocar um freio na tramitação. O tema das drogas, mesmo quando apresentado sob uma ótica supostamente humanitária, é delicado demais para que se vote um projeto de lei sem o devido escrutínio da sociedade. As portas que o PL 399 pode abrir são daquele tipo que se tornam impossíveis de fechar depois.

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