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Editorial

O difícil debate sobre parar ou trabalhar

Curitiba é uma das cidades onde o comércio está reabrindo de acordo com normas de segurança, como o uso obrigatório de máscaras. (Foto: Lineu Filho/Tribuna do Paraná)

Na crise do coronavírus, poucos temas suscitaram tantas dúvidas e opiniões divergentes quanto a decisão de parar ou trabalhar, produzir ou interromper as atividades. Propôs-se uma difícil escolha entre duas opções igualmente problemáticas: seguir produzindo bens e serviços (com todos trabalhando) ou parar a produção e ir para casa em quarentena. Claro que, entre essas duas opções, surgiu uma terceira: parar parte do sistema produtivo e manter outra parte operando e produzindo, com parcela da população ficando em casa, em isolamento social, e os demais indo para seus locais de trabalho a fim de garantir a produção de bens e serviços vitais.

Foi nesse conjunto de hipóteses que se deram os mais nervosos embates, a começar pela divergência, estranha e inadequada, entre o presidente da República e o agora ex-ministro da Saúde. Dúvidas, opiniões contrárias, desconhecimentos dos fatos e incertezas são normais, considerando a gravidade da crise e a ignorância sobre a nova pandemia, que deixou a própria comunidade científica batendo cabeça e divergindo. De saída, é preciso deixar claro que a ciência não é um templo infalível nem um repositório de certezas inquestionáveis, nem os cientistas estão todos de acordo sobre todos os pontos. A ciência produz maravilhas, salva vidas, torna a existência mais longa e menos dolorosa. Mas ela não é estática nem tem respostas para tudo. Pelo contrário: a essência da ciência é o enfrentamento de problemas novos, soluções novas e a reformulação de teorias e tecnologias antigas que, à luz do progresso, se mostraram falhas ou mesmo falsas.

Nesse sentido, sem confronto de hipóteses não há ciência, pois esta repousa na ideia de tese, antítese e síntese. O estranho na luta nacional para enfrentar a pandemia foi o choque aberto entre autoridades, com opiniões e declarações públicas opostas. Teria sido muito melhor se o gabinete de governo tivesse debatido, brigado e divergido reservadamente, mas emergindo desse processo com uma orientação única para a população. Infelizmente, são situações como essa que alimentam a crença de que a política não é propriamente uma área na qual a verdade e a coerência sejam as virtudes mais praticadas.

Há pessoas de imensa boa vontade e honestidade intelectual em todos os campos do debate sobre o alcance e a duração do isolamento contra o coronavírus

Mas, a despeito de todos os desencontros, o que se tem no Brasil e no mundo é a complexa escolha entre continuar produzindo o mínimo de bens e serviços necessários à vida, de um lado, e a necessidade de isolamento social, de outro. Aqui, é importantíssimo ressaltar que há pessoas de imensa boa vontade e honestidade intelectual em todos os campos do debate. Classificar de “covardes” os defensores do isolamento e de “genocidas” os defensores da retomada da atividade econômica, como tem ocorrido no ambiente das mídias sociais, é uma injustiça que escancara a pobreza do debate brasileiro atual – não apenas sobre esta questão, diga-se de passagem.

A princípio, a solução proposta foi mista: respeitar o isolamento e ficar em casa, mas sem deixar de produzir o mínimo necessário para que as pessoas não pereçam de fome ou falta dos bens mais elementares à existência, a exemplo de alimentos, energia, água e medicamentos. No fim das contas, com todas as implicações boas ou ruins, a população fez sua escolha: o mapa do isolamento mostrou que, em todos os estados brasileiros, em torno de metade da população ficou isolada e metade seguiu trabalhando.

Certo ou errado, o fato de pouco menos de 80% dos municípios (boa parte deles pequenos) não ter identificado ainda um único caso de infecção por coronavírus contribuiu para certo grau de despreocupação com os riscos nesses locais até então não afetados. Porém, sabendo que quem não faz o isolamento social se expõe ao risco, aqueles que se mantiveram trabalhando compõem um exército de valorosos profissionais que, em suas respectivas unidades produtivas, garantiram o fornecimento necessário de forma que não houve colapso de abastecimento.

Outro aspecto na difícil decisão de parar ou seguir trabalhando refere-se aos quase 40 milhões de profissionais autônomos, sem patrão e sem salário garantido, que perderam parte ou toda a sua renda, ao se manterem em isolamento. Embora o governo tenha criado um programa de auxílio financeiro, estabelecimentos de serviços como consultórios dentários, salões de beleza e cabeleireiro, consultórios psicológicos e centenas de outros em que o serviço é prestado no contato direto com o consumidor continuam com seus custos de aluguel, materiais, energia e outros. Esse grupo de profissionais não tem a opção do home office, que é o trabalho feito em casa, de forma remota e com o uso de recursos tecnológicos, sem a necessidade de ir ao escritório ou local de produção. Essa escolha não existe para os serviços pessoais que requerem a presença física do consumidor, a exemplo de um corte de cabelo ou uma sessão de fisioterapia. Em algumas cidades, estes serviços estão sendo lentamente retomados desde que sejam obedecidas várias normas de segurança.

Quando a fábrica, a loja, o escritório e o consultório fecham e os meios de transporte de cargas e de passageiros deixam de transitar, alguns fenômenos econômicos dramáticos ocorrem: parte da produção deixa de existir, muitas receitas de vendas desaparecem, as empresas ficam sem recursos para pagar os salários e, no caso dos autônomos, o profissional fica sem renda. De quebra, sem produto e renda, o governo sofre queda da arrecadação de tributos, pois a lógica econômica diz que tributo deve ser uma fração de produto, renda e propriedade. Há limite para o quanto a sociedade suporta em perda de vendas e de renda pessoal, pois o outro lado da moeda é o colapso de abastecimento. Por trás dos fatos monetários (perda de faturamento, queda de salários e de outras rendas pessoais) há fatos materiais, mais especificamente, produção, circulação e consumo de bens materiais e serviços necessários à vida e ao bem-estar social. Essa é a questão essencial.

Não há decisão fácil nessa situação nem se sabe qual a medida certa para a interrupção do sistema produtivo. Que algum isolamento seria necessário parece fora de questão. Mas sua duração e alcance ideais são desconhecidos; os países tateiam no escuro à busca da melhor fórmula para preservar a saúde e o emprego das pessoas. O debate sobre seguir parado ou voltar ao trabalho é importante e precisa ocorrer de forma a gerar mais luz que calor.

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