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Editorial

O direito do Estado de combater as drogas

Pela segunda vez neste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, adiou a continuação do julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas, que deveria ocorrer no próximo dia 6 de novembro. O caso já deveria ter sido analisado em 5 de junho, mas também naquela ocasião o presidente do STF decidiu pelo adiamento. Ainda não há nova data marcada para a retomada do julgamento – o mais provável é que fique para 2020 –, mas nem por isso a sociedade pode baixar a guarda em um tema tão sensível e que já afetou tantas famílias Brasil afora.

O julgamento, iniciado em 2015, tem origem em um episódio ocorrido em 2009. Um detento foi flagrado com três gramas de maconha na cela que dividia com outros presos, e por isso acrescentou-se, em sua ficha criminal, o delito de porte de drogas para uso pessoal, previsto no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), e ele foi condenado a prestar serviços comunitários. O tema chegou ao Supremo porque o defensor público designado para o caso alegou violação da intimidade e da vida privada do detento, direitos protegidos constitucionalmente. O relator, ministro Gilmar Mendes, votou pela descriminalização do porte de quaisquer drogas; Edson Fachin e Roberto Barroso votaram apenas pela descriminalização do porte de maconha, mantendo o crime no caso de outros entorpecentes. Teori Zavascki, o ministro seguinte a votar, pediu vista, mas faleceu no início de 2017, e Alexandre de Moraes, nomeado em seu lugar, liberou o processo no fim de 2018.

A própria natureza da droga basta para ela seja ativamente combatida pelo poder público

O potencial destrutivo das drogas só pode ser ignorado por visão ideológica que despreza os conhecimentos acumulados por décadas de pesquisas médicas. Mesmo a maconha, tida como relativamente “inofensiva” perto de entorpecentes como a cocaína, a heroína ou o crack, também tem efeitos deletérios fartamente comprovados sobre o sistema nervoso, algo que a militância vem tentando contornar explorando uma nova fronteira no debate, a da “maconha medicinal”. O termo não é escolhido por acaso, pois insinua que poderia haver um emprego benéfico da droga, quando na verdade apenas o canabidiol, um dos componentes da maconha, pode ter uso terapêutico, e isso quando devidamente sintetizado, ingerido em cápsulas ou óleo – e mesmo assim seus resultados ainda são controversos, como mostrou reportagem recente da Gazeta do Povo.

Não é à toa que, ainda em 2015, quando o STF começou a julgar a descriminalização, as principais entidades médicas brasileiras – o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) – assinaram nota conjunta pedindo a manutenção da redação atual da Lei de Drogas. Naquela ocasião, os médicos apontaram o que qualquer pessoa de bom senso consegue perceber: a droga causa um dano enorme ao ser humano.

Mas não seria esta visão um tanto puritana? O álcool, argumentarão muitos, também tem efeitos destrutivos e causa inúmeras mortes, inclusive no trânsito; o fumo causa doenças que oneram o serviço de saúde pública. Nem por isso se advoga o retorno à Lei Seca norte-americana, ou o banimento total do cigarro. Mas a contradição, aqui, é apenas aparente, e se desfaz quando consideramos a natureza de todas essas substâncias. O álcool, em geral, só terá efeitos alucinógenos quando consumido sem moderação (não falamos, aqui, das pessoas predispostas à embriaguez, que não podem consumir nem uma gota sequer, e que são exceção à regra); o tabaco nem mesmo leva a um estado alterado. Mas isso muda em relação às drogas, pois não existe “limite seguro” para seu consumo e que não cause os efeitos daninhos fartamente comprovados. Um baseado, uma pedra, uma carreira já disparam as reações que destruirão o organismo. Não existe uso benéfico possível para essas drogas.

E isso justifica, portanto, que o Estado intervenha no sentido de tentar banir a presença dessas substâncias na sociedade, colocando o peso da lei e mobilizando as forças de segurança para tal. Isso inclui criminalizar todas as atitudes que se relacionam às drogas – não apenas sua produção, ou sua venda, mas até mesmo o porte. E, para isso, nem é preciso embasar a legitimidade da proibição na dimensão coletiva do uso de entorpecentes, ao estimular comportamentos irresponsáveis que atingem, sim, outras pessoas, e causar dependência que devasta não apenas quem a usa, mas também suas famílias. A própria natureza da droga basta para ela seja ativamente combatida pelo poder público.

A legitimidade do combate às drogas não exige necessariamente que o usuário deva ser preso

A descriminalização, no entanto, seria um golpe fatal nestes esforços, como apontou, ainda em 2015, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Os traficantes passarão a se refugiar nas quantidades máximas que o legislador ou a Justiça definirão para configurar o mero porte (e não tráfico), consagrando “a institucionalização do exército de formigas”, confirme afirmou Janot durante o julgamento. Qualquer intenção do Estado de coibir o uso das drogas, ou apenas da maconha, estará frustrado de antemão diante da impossibilidade de responsabilizar quem estiver portando quantidades pequenas, pois bastará a quem for flagrado alegar que elas servem ao uso próprio, por mais que a intenção real continue sendo o comércio ilícito.

A legitimidade do combate às drogas não exige necessariamente que o usuário deva ser preso. Ele também é vítima, e precisa, acima de tudo, de tratamento, não de cadeia. E a Lei de Drogas não precisa ser alterada para isso, pois ela já não prevê a prisão em caso de porte – as penas descritas na lei são “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Mas uma coisa é, por motivos diversos, deixar de punir uma conduta com a prisão, e outra, muito diferente, é decidir que esta mesma conduta não é crime e que, portanto, não deve ser combatida. Se é possível ao Estado desejar uma sociedade completamente livre das drogas, ele precisa ter as condições – inclusive legais – de concretizar este ideal. Permitir a posse, no entanto, seria burlar esta lógica, amarrando as mãos do poder público e, na prática, viabilizando a circulação livre de algo que deveria estar erradicado.

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