O saneamento – ou, melhor dizendo, a falta dele – é uma vergonha nacional. Os brasileiros sem acesso a água tratada são 35 milhões, e quase metade da população (100 milhões de pessoas) não é alcançada pelo serviço de coleta de esgoto. Além disso, apenas metade do esgoto coletado no país é devidamente tratado. Sucessivos governos, de todos os matizes político-ideológicos, nas três esferas, não foram capazes de universalizar este que é um dos serviços mais básicos e cuja ausência custa caro ao país, na forma de doenças que poderiam ser facilmente evitadas e de severa degradação ambiental.
No entanto, o que é uma deficiência vergonhosa também se mostra como oportunidade. Assim como no caso das ferrovias brasileiras – cuja malha é a mesma de 100 anos atrás –, que já garantiram dezenas de bilhões de reais em projetos solicitados ao governo federal assim que entrou em vigor um novo marco regulatório, o saneamento deve receber aportes igualmente vultosos e necessários. O Novo Marco Legal do Saneamento, aprovado e sancionado em 2020, inclui a meta de levar a água potável e a coleta de esgoto a 99% e 90% dos brasileiros, respectivamente, e considera que é o setor privado que deve assumir o protagonismo nesta missão de universalizar os serviços de água e esgoto até 2033.
Dezenas de milhões de brasileiros não podem seguir condenados à precariedade quando se trata de um direito básico como o acesso a água tratada e serviço de coleta de esgoto
Segundo reportagem da Gazeta do Povo, desde a entrada em vigor do Novo Marco do Saneamento até abril deste ano, foram realizados 16 leilões que cobrem 217 municípios, onde vivem 20 milhões de pessoas, com R$ 46,7 bilhões em investimentos previstos. Até 2024, ainda devem ocorrer outros 28 leilões em 17 estados, beneficiando 16,3 milhões de brasileiros com investimento de R$ 24 bilhões. Mesmo assim, estes montantes precisam ser apenas o começo, pois a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033 deve exigir de R$ 507 bilhões (na conta do Ministério do Desenvolvimento Regional) até R$ 993 bilhões, de acordo com a consultoria KPMG.
O grande desafio está nos municípios menores e mais pobres, que tendem a apresentar contratos irregulares para a prestação dos serviços de água e esgoto – segundo o Instituto Trata Brasil, nesses municípios vivem 30 milhões de brasileiros, dos quais 64,4% têm água tratada e apenas 29,1% têm esgoto coletado. Ali, o investimento necessário será maior, pois será preciso construir redes completas de água e saneamento básico, em vez de apenas manter e melhorar redes já existentes. Para que essas pessoas hoje esquecidas pelo Estado não acabem ignoradas também pelo setor privado, será preciso encontrar modelos contratuais atrativos, incentivando a formação de consórcios de municípios próximos, possibilidade aberta pela nova legislação.
Dezenas de milhões de brasileiros não podem seguir condenados à precariedade quando se trata de um direito básico como o acesso a água tratada e serviço de coleta de esgoto. A entrada do setor privado, o estabelecimento de um ambiente de competição – que forçará as estatais a serem mais eficientes – e a possibilidade de novos arranjos entre empresas e poder público para a oferta do serviço são etapas necessárias se o Brasil deseja o fim de calamidades como esgotos a céu aberto e doenças causadas pelo consumo de água não tratada.