Como é possível que um país considerado, até poucos anos atrás, um dos mais seguros da América do Sul esteja hoje em uma situação equivalente à de uma guerra civil, com a suspensão de garantias constitucionais e poder de polícia concedido às Forças Armadas? O mergulho do Equador no caos total começou com a fuga do líder de uma das principais facções do crime organizado do país, no último fim de semana, mas não é um episódio súbito e isolado, e sim o resultado de um processo que guarda muitas similaridades com os antigos problemas que afligem a segurança pública no Brasil.
O crime organizado já deu inúmeras demonstrações de força desde a fuga de José Adolfo Macias. Não apenas a Los Choneros, mas outras facções estão levando o terror aos equatorianos. Policiais foram sequestrados, explosões foram registradas em várias cidades do país, o estúdio de uma emissora de televisão foi invadido, e as prisões do país estão em ebulição, com novas fugas e rebeliões em que há mais de uma centena de reféns. Assim como no Brasil, a maioria dos estabelecimentos prisionais já se tornou “propriedade” das facções, e Macias conseguiu fugir justamente depois de ser transferido de uma penitenciária federal de segurança máxima para uma cadeia regional em Guayaquil, graças a uma decisão judicial assinada por um magistrado com histórico de decisões favoráveis a chefões do crime organizado e que acaba de ser suspenso.
Enquanto a deterioração da segurança pública no Equador foi um processo de poucos anos, no Brasil ela vem ocorrendo lentamente há décadas
O Equador ostentou taxas bastante baixas de homicídios até 2017, mas mesmo antes disso alguns acontecimentos começaram a traçar o destino do país, como o desmantelamento de uma base militar norte-americana em uma região portuária do país em 2009, por ordem do esquerdista Rafael Correa. O ponto de inflexão, no entanto, veio com o acordo de paz entre o governo colombiano do então presidente Juan Manuel Santos e os narcoterroristas das Farc, em 2016. O tráfico fincou suas bases no vizinho Equador, onde se aliou a cartéis mexicanos e até albaneses, e se aproveitou dos 2,2 mil quilômetros de costa para colocar de vez o país na rota do transporte de narcóticos para os Estados Unidos e a Europa, via Canal do Panamá. A omissão ou a incompetência do Estado equatoriano em combater os cartéis permitiu que eles se fortalecessem a ponto de se sentirem capazes de cometer crimes políticos de grande efeito na vida do país – embora o assassinato do candidato à presidência Fernando Villavicencio, em agosto de 2023, ainda não tenha sido esclarecido, ele estava na mira dos cartéis, que já o haviam ameaçado de morte.
Enquanto a deterioração da segurança pública no Equador foi um processo de poucos anos, no Brasil ela vem ocorrendo lentamente há décadas. E, se aqui o crime organizado não chegou ao ponto de colocar um país inteiro de joelhos, já causou pânico generalizado em algumas regiões do país, como nas ondas de ataques do PCC no estado de São Paulo, e há várias características em comum entre os casos equatoriano e brasileiro. Com exceções (como as prisões federais de segurança máxima), as cadeias são hoje dominadas pelas facções, e fora dos muros das penitenciárias há territórios inteiros dominados por traficantes ou milicianos, da Amazônia ao Rio de Janeiro, onde ainda por cima ganharam carta branca para se reforçar graças a decisões do Supremo Tribunal Federal que amarraram os braços do Estado e o impedem de combater os criminosos com a força necessária.
Independentemente do acerto ou não do instrumento escolhido pelo presidente Daniel Noboa para tentar combater os cartéis – o estado de exceção já foi decretado dezenas de outras vezes nos últimos anos –, fato é que a espiral de violência que sugou o Equador mostra de maneira inequívoca os efeitos do descaso com a segurança pública. Quando o Estado não quer ou não consegue combater o crime, quando as leis são extremamente lenientes com os bandidos, quando o debate público é dominado por correntes ideológicas que enxergam os criminosos como “vítimas da sociedade”, os resultados trágicos aparecem, mais cedo ou mais tarde.