A ideologização e doutrinação no ensino ganharam tanta dimensão que não há mais como negá-las. Os registros de casos ocorridos em sala de aula, textos publicados em livros didáticos, questões enviesadas em provas de escola, vestibulares e até no Enem são abundantes. Teóricos marxistas como Antonio Gramsci identificaram a educação como um dos campos de batalha para se fazer a revolução socialista sem o uso de armas, e no Brasil a estratégia foi conduzida com muito sucesso. Não há a menor dúvida de que algo precisa ser feito.
Uma das respostas da sociedade ao problema da doutrinação é o projeto Escola sem Partido, que tramita no Congresso sob o número PL 7.180/14. Em sua formulação básica, ele previa que um cartaz com seis “deveres do professor” seria afixado nas salas de aula – o substitutivo mais recente estende os mesmos “deveres” ao conteúdo de livros didáticos e provas, que também estão sujeitos à ideologização. E vários desses itens fazem muito sentido. Seria efetivamente absurdo que professores privilegiassem alunos por causa de suas convicções políticas ou morais; pior ainda seria a cooptação ou a propaganda político-partidária em sala de aula, ou a violação das convicções morais dos pais – recentemente, um colégio confessional católico de Belo Horizonte foi acionado pelo Ministério Público por introduzir conteúdos ligados a educação sexual à revelia dos pais.
Mas o calcanhar de Aquiles do projeto está justamente no que muitos veem como o seu grande mérito: a tentativa de proporcionar um ensino totalmente neutro. Vejamos o quarto dos “deveres do professor”: “ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, [o professor] apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria”. Bem sabemos por que essa determinação foi introduzida: não faltam docentes dispostos a cantar as glórias do socialismo e seus líderes, a denunciar as mazelas do “capitalismo selvagem” ou de várias outras instituições associadas à “opressão”, a exaltar os pensadores da esquerda e a esconder os teóricos liberais ou conservadores. Mas essa determinação coloca numa saia justa os professores honestos.
Os caminhos para se combater a doutrinação e a ideologização em sala de aula, felizmente, são inúmeros
Pensemos, por exemplo, em um professor que, em uma aula de História do Brasil, ou de Sociologia, trate do impeachment de Dilma Rousseff e explique corretamente os crimes de responsabilidade nos quais a presidente incorreu. Teria ele de dar espaço igual à tresloucada narrativa de que a petista foi vítima de um golpe, tratando-a como equivalente, ou igualmente aceitável? Afinal, essa é uma “versão concorrente a respeito da matéria”. Ou um professor que afirme que o capitalismo e o livre mercado tiraram milhões de pessoas da pobreza, ou que o socialismo foi responsável por milhões de mortes; teria ele de apresentar a crítica ou a defesa desses sistemas de forma a promover uma equivalência entre as duas visões?
E já não bastará ao professor alegar que está meramente apresentando os fatos. A própria formulação do texto exige a apresentação de “versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes”: versões falsas, opiniões absurdas, teorias sem o menor compromisso com a realidade, todas elas acabam contempladas pelo projeto, com a agravante de que o professor também não poderá emitir seu juízo de valor sobre as mentiras que será obrigado a apresentar a contragosto, para que não se considere que ele está agindo para impor uma visão, ainda que esta visão seja cristalinamente verdadeira. Esse efeito – certamente indesejado, mas ao mesmo tempo inevitável – de conceder uma aura de respeitabilidade a grandes absurdos certamente terá consequências danosas sobre os bons professores, aqueles que se pautam pelo amor à verdade enquanto têm a consciência da impossibilidade da neutralidade completa.
Luiz Felipe Pondé: Escola sem Partido (26 de novembro de 2018)
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Todos nós temos nossas concepções a respeito do que é bom, belo, correto, verdadeiro e justo. Nós as levamos para nossas relações familiares e sociais, bem como para nossa vida profissional. Com os professores não há como ser diferente. Ainda que se peça que o docente se atenha a expor única e exclusivamente os fatos, a própria seleção de que fatos mostrar, ou de quais são mais relevantes, reflete uma concepção de mundo. A pretensão de neutralidade absoluta, da maneira como desejada pelo projeto Escola sem Partido, não apenas é impossível, tanto na teoria quanto na prática – e nem é desejável, por mais difícil que seja aceitar esse fato –, como também servirá de meio para permitir a divulgação de ataques à verdade e ao bom senso, justamente o contrário do que se espera de uma educação que cumpra seu papel.
E imaginemos, ainda, uma outra consequência do projeto: uma vez identificada e denunciada a doutrinação, o caso inevitavelmente acabaria levado ao Poder Judiciário. Em breve, teríamos juízes, desembargadores, ministros de STJ e STF decidindo o que pode ou não pode ser ensinado sobre o impeachment de Dilma, sobre a ditadura militar, sobre as tiranias comunistas, sobre democracia, enfim, sobre inúmeros outros assuntos. É realmente isso que desejamos? Não estaríamos apenas entregando aos magistrados a definição dos currículos escolares; estaríamos fazendo do Judiciário o depositário e árbitro final de todo o conhecimento humanístico no país.
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Os caminhos para se combater a doutrinação e a ideologização em sala de aula, felizmente, são inúmeros. No âmbito institucional, o Ministério da Educação tem um valioso papel a cumprir em suas atividades de formação de professores, nas diretrizes curriculares, na recomendação de livros didáticos. Ricardo Vélez Rodríguez, com sua experiência na docência universitária, tem plena consciência de como funciona a doutrinação e como ela pode ser combatida pelo MEC. Mas o grande poder está nas mãos dos próprios pais e alunos, como já demonstrou o próprio movimento Escola sem Partido. Desde seu surgimento, em 2004, ele tem prestado um serviço incomensurável à sociedade. São inúmeros os pais que, até então, simplesmente ignoravam que seus filhos vinham sendo politicamente doutrinados. O Escola sem Partido fez com que pais e responsáveis se envolvessem mais ativamente na educação das crianças, buscando saber mais sobre os conteúdos expostos e as atividades realizadas em sala de aula e estimulando-os a procurar coordenadorias e diretorias quando identificassem o viés ideológico nos conteúdos transmitidos.
Todos queremos o fim da doutrinação, mas depositar todas as esperanças em um projeto de lei é esquecer o protagonismo de pais, alunos e todos os interessados em uma educação pautada pela verdade, e não pela ideologia. A sociedade já mostrou que é capaz de reagir –manter esse ímpeto é tarefa não de burocratas, nem de parlamentares, mas de cada um de nós.