Quase um ano depois de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) abrir um inquérito contra membros da (hoje extinta) força-tarefa da Operação Lava Jato de forma claramente abusiva, o presidente da corte, ministro Humberto Martins, finalmente decidiu pelo seu arquivamento. Nestes tempos invertidos em que aqueles que assaltaram os cofres públicos e pilharam estatais são descritos como vítimas, e os agentes públicos que investigaram e condenaram políticos e figurões são criminalizados, a decisão do STJ ajuda, até certo ponto, a restaurar a verdade sobre a Lava Jato, embora a forma como o arquivamento se deu ainda deixe muitos motivos para preocupação.
O inquérito aberto em fevereiro de 2021 pretendia investigar uma suposta tentativa, por parte da Lava Jato, de investigar informalmente (e ilegalmente) membros do STJ, analisando sua movimentação patrimonial com a ajuda da Receita Federal. No entanto, para realizar tal apuração, o STJ cometeu uma série de irregularidades, certamente inspirado em outro inquérito abusivo – o das fake news, aberto pelo Supremo Tribunal Federal e que está prestes a completar três anos. Afinal, o STJ também se colocou no papel de vítima, investigador e julgador; além disso, ignorou completamente que membros do Ministério Público Federal só podem ser investigados por outros integrantes do MPF e julgados em Tribunais Regionais Federais, não no STJ. E, ainda por cima, fez letra morta do inciso LVI do artigo 5.º da Constituição Federal – segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” – ao usar, como pretexto para a instauração do inquérito, as supostas mensagens trocadas entre procuradores e obtidas por meio da invasão de seus celulares; ou seja, uma prova ilegal, fruto de um crime, que nunca poderia ser usada contra ninguém, ainda mais quando sua autenticidade jamais chegou a ser comprovada.
A ideia de que tanto a força-tarefa quanto Moro burlaram ou violaram sistematicamente a lei para conseguir colocar na cadeia os responsáveis pelo petrolão não tem a menor base factual ou jurídica, mas mesmo assim conseguiu se impor
Em outras palavras, o inquérito do STJ viola tantas normais legais que, ainda que estivesse apurando um crime real, ele jamais poderia ter existido. O condicional faz todo o sentido aqui, pois o que Martins alegou para o arquivamento foi justamente a ausência completa de qualquer indício que aponte para uma ação ilícita de algum integrante da Lava Jato. “Das informações prestadas pelas autoridades estatais não se verifica a existência de indícios suficientes de autoria e de materialidade de eventuais crimes, o que induz à convicção de que o arquivamento do presente inquérito é medida que se impõe”, diz a decisão de Martins.
Que o arquivamento seja motivado pela inexistência de qualquer elemento que aponte para uma ação fora da lei por parte dos procuradores tem seus méritos, pois ajuda a derrubar a narrativa dos “abusos da Lava Jato”, que passou a se impor desde o circo midiático iniciado pelo site The Intercept e outros órgãos de imprensa, responsáveis pela publicação dos supostos diálogos, que também envolveriam o então juiz Sergio Moro. A ideia de que tanto a força-tarefa quanto Moro burlaram ou violaram sistematicamente a lei para conseguir colocar na cadeia os responsáveis pelo petrolão não tem a menor base factual ou jurídica, mas mesmo assim se impôs de tal forma que contaminou até mesmo o STF, que a invocou para justificar decisões absurdas como a declaração de suspeição de Moro. O que os inimigos da Lava Jato chamam de “abusos” normalmente não passa de discordância ou desagrado em relação a escolhas perfeitamente legítimas feitas pelo MPF e por Moro sobre o uso das ferramentas que a lei oferece para se combater a corrupção.
- O inquérito abusivo do STJ contra a Lava Jato (editorial de 23 de fevereiro de 2021)
- A verdade sobre a Lava Jato (editorial de 16 de março de 2021)
- A verdade sobre Sergio Moro (editorial de 20 de abril de 2021)
- “Excessos” da Lava Jato, narrativa equivocada e preocupante (editorial de 4 de outubro de 2019)
No entanto, é muito preocupante que Martins, ao determinar o arquivamento do inquérito contra os procuradores, não tenha admitido nenhuma das irregularidades processuais que envolveram sua instauração e condução – pelo contrário, o presidente do STJ defendeu, na peça, a abertura da investigação justificando-a tanto no regimento interno da corte quanto na decisão do Supremo que manteve o inquérito das fake news. Com isso, ele ajuda a reforçar a argumentação equivocada que legitima toda uma série de arbítrios recentes cometidos pelos tribunais superiores – basta lembrar que só o inquérito das fake news já rendeu censura à imprensa, prisões arbitrárias e violação da imunidade parlamentar. E, sendo assim, nada impede que os ex-integrantes da Lava Jato voltem a ser alvo de perseguição, inclusive com o uso de provas ilegais. Ao menos neste caso, a verdade sobre a Lava Jato está restaurada, mas os brasileiros preocupados com a desconstrução da maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história do país precisam seguir atentos.
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Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura