O governo tem o direito de direcionar o apoio que dá à produção cultural de um país? Essa pergunta vem à tona com as críticas dos opositores do presidente Jair Bolsonaro à maneira como ele tem lidado com os incentivos à cultura e órgãos como a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Agência Nacional de Cinema (Ancine). A redução do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual para 2020, prevista em projeto de lei, foi vista, por exemplo, como um “ataque” do presidente ao setor, por mais que os cortes estejam afetando indiscriminadamente várias áreas do governo. Em abril, o governo reduziu drasticamente o valor máximo de projetos contemplados pela Lei Rouanet, com o objetivo de descentralizar os incentivos e privilegiar produções com ingressos mais baratos. Em outras ocasiões, Bolsonaro já criticou o apoio estatal à produção de determinados filmes. Ainda que a prática atual do governo seja menos hostil que o discurso de campanha, que costumava enxergar em instrumentos como a Lei Rouanet algo a destruir, o presidente não descartou a hipótese de até mesmo extinguir a Ancine caso os filtros para decidir quais obras devem receber apoio não pudessem estar alinhados aos “preceitos que a maioria da sociedade vivencia”, na definição do porta-voz Otávio Rêgo Barros.
A pergunta que abre este texto está intimamente ligada a outra: cabe ao Estado apoiar a produção cultural? Diferentes correntes da filosofia política dão respostas diferentes a essa questão. Um libertário, por exemplo, negará logo de início a simples possibilidade de o Estado apoiar a cultura, pois enxerga nisso uma intromissão indevida em uma atividade que deve ficar a cargo do setor privado. Também muitos liberais de matiz antiperfeccionista farão objeções à participação do Estado no setor cultural, alegando que ela corresponde a uma escolha que reflete concepções abrangentes de valores, o que, segundo essa visão, não cabe ao poder público fazer. Por que incentivar (pensam eles) a cultura, e não o agronegócio, ou a produção industrial?
É possível que o poder público considere o acesso à cultura um valor importante, que precisa ser estimulado e facilitado à população, e há casos em que apenas a ação estatal pode viabilizar este acesso
Outra vertente do liberalismo, a perfeccionista, tem uma resposta a nosso ver mais adequada. De fato, o protagonismo no campo cultural, produzindo, patrocinando e divulgando a cultura, precisa ser do setor privado. Mas é possível que o poder público considere o acesso à cultura um valor importante, que precisa ser estimulado e facilitado à população, e há casos em que apenas a ação estatal pode viabilizar este acesso. Quando é assim, não há motivo para que o Estado se abstenha de incentivar a vida cultural de um país.
Há inúmeros mecanismos para se oferecer esse apoio, desde o aporte direto de recursos até opções como a Lei Rouanet, e que parte de um princípio completamente liberal: uma vez aprovado determinado projeto, seus produtores buscam patrocínio de empresas e pessoas físicas, que podem abater esse valor dos impostos que deveriam pagar. Em outras palavras, o empresário ou o contribuinte ganham poder de escolha sobre o uso de um dinheiro que terão de desembolsar de qualquer maneira; podem pagar seus impostos normalmente, e deixar que o Estado decida onde gastará esse valor, ou podem direcionar pelo menos parte desse gasto a um projeto cultural escolhido pela própria pessoa ou empresa, algo no qual ela acredite e deseje incentivar.
Uma questão mais complexa é a possibilidade de o governo, em qualquer dos modelos, impor determinados critérios qualitativos para escolher que manifestações artísticas apoiar. O já citado liberalismo antiperfeccionista, ao negar ao Estado a possibilidade de estabelecer qualquer tipo de restrição que indique haver uma concepção, por parte do poder público, a respeito do que é bom, belo ou valioso, deixaria o Estado de mãos amarradas. Ainda que um liberal desta corrente aceite a participação do poder público no ramo cultural, essa participação teria de ocorrer segundo diretrizes bem estritas: o gestor teria de apoiar qualquer produtor que batesse à sua porta (o que é economicamente inviável); ou cortar totalmente a possibilidade de apoio, para não ter de demonstrar preferência alguma; ou, no máximo, ater-se a critérios estritamente técnicos, como a ordem cronológica de solicitação ou a possibilidade de o evento ou obra se financiar sem a ajuda estatal. Em todos esses casos, o conteúdo é irrelevante e, segundo essa corrente, o Estado jamais deveria decidir com base no teor da manifestação artística que pretende apoiar.
- Nossas convicções: os limites da ação do Estado
- Necessários incentivos culturais (editorial de 5 de fevereiro de 2016)
- Fomento à cultura: um roteiro de Ionesco (artigo de Marino Galvão Jr., publicado em 3 de fevereiro de 2017)
- É preciso falar sobre a Rouanet (artigo de Marcella Carvalho, publicado em 11 de julho de 2016)
Esta concepção, como afirmamos, não apenas amarra demais as mãos do poder público como também ignora o fato de que a população, ao eleger determinados representantes, também o faz movida por valores que deseja ver refletidos nas políticas públicas; os governantes, por sua vez, têm o direito de implementar esses valores nas escolhas que fazem: desde incentivar uma vocação econômica regional até decidir quais manifestações artísticas apoiar.
Um governo pode acreditar que uma orquestra sinfônica e as chamadas “belas artes” merecem e precisam de apoio financeiro, pois, mesmo não tendo o mesmo apelo popular de outros gêneros musicais ou artísticos, oferecem algo valioso a quem entra em contato com essa arte – e é inegável que, no Brasil e fora dele, muitas orquestras sobrevivem apenas porque podem contar com esse apoio. Aqui, não negamos, está embutido um juízo de valor. Mas o poder público tem o direito de fazer essa avaliação e de agir de acordo com ela. E, da mesma forma, o governo pode recusar o apoio a obras que promovam visões degradantes a respeito do ser humano, ou que agridam valores caros à sociedade brasileira.
Evidentemente, há limites a esse poder de decisão, que não pode ser usado com critérios puramente políticos, arbitrários ou de autopromoção – seria inaceitável, por exemplo, que o poder público incentivasse, mesmo que por meio de renúncia fiscal, uma cinebiografia ou documentário sobre um presidente da República durante o seu mandato. Os critérios precisam ser sempre explícitos, institucionalizados, transparentes e objetivos – um exemplo seria a não concessão de incentivo a obras ou produções com determinada classificação etária que as tornassem contraindicadas ao público infantil ou juvenil.
Surpreende a ligeireza com que a palavra “censura” aparece em declarações e textos que tratam simplesmente do fim ou da recusa do apoio estatal a este ou aquele produto cultural
Aqui, é preciso ressaltar que temos tratado, o tempo todo, do incentivo às manifestações culturais, ou seja, da possibilidade de que elas contem com ajuda estatal e dos critérios que o governo pode usar também para recusar esta ajuda. Em nenhum momento se levantou a hipótese de o poder público proibir determinada obra de arte. Por isso, surpreende a ligeireza com que a palavra “censura” aparece em declarações e textos que tratam simplesmente do fim ou da recusa do apoio estatal a este ou aquele produto cultural, pois não se cogita impedir a sua produção ou exibição – quando Bolsonaro criticou, por exemplo, o filme Bruna Surfistinha, disse claramente ser contrário ao fato de o longa ter sido feito “com dinheiro público”, sem nem mesmo insinuar que o poder público poderia ou deveria ter proibido sua realização ou exibição. De fato, havendo patrocinadores privados, financiamento coletivo ou mesmo autofinanciamento, um filme, uma exposição ou qualquer outra manifestação artística pode perfeitamente ser produzido e exibido, aplicando-se apenas as limitações legais – por exemplo, vedando-se a apologia ao crime, ou estabelecendo restrições de idade de acordo com o conteúdo.
O ambiente cultural brasileiro tem espaço para todos, mas os recursos do governo e as renúncias fiscais não são ilimitados, e a sociedade, por meio dos representantes eleitos, deve ter o direito de fazer suas escolhas também nesta área. Sabendo evitar extremos e abusos, como escolhas guiadas por critérios exclusivamente políticos ou ideológicos, sem transparência e deixados ao arbítrio de um burocrata, o governo pode ser um agente importante no apoio à cultura; os próximos movimentos nesta área dirão se também aqui o país entrará no rumo certo.
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